Políticas de Igualdade para a Cultura PDF Imprimir e-mail
04-Mar-2009
João Teixeira Lopes José Soeiro

João Teixeira Lopes

José Soeiro

Para além da sobrevivência, a cultura como política: projectos, redes, públicos e territórios

As políticas de igualdade para a cultura assentam em princípios fortes de democracia, liberdade e promoção da igualdade. A esquerda encara por isso a política cultural como uma das responsabilidades fundamentais do Estado, ao mesmo tempo que não abdica de pensar a dimensão cultural de todas as lutas pela emancipação e a intervenção cultural enquanto constituinte dos processos de transformação da sociedade.

Este é um texto propositivo. Desta forma, é intencional a economia de conceitos e pontos de vista mais substantivos. O texto introduz alguns princípios gerais de política cultural e divide-se em cinco áreas: equipamentos culturais; apoio à criação e estatuto sócio-profissional; públicos da cultura; comunicação social e difusão; turismo cultural e território. Em qualquer dos casos perceber-se-á a forte componente transversal dos desafios que se colocam.

Princípios gerais de uma política cultural pela igualdade

- o limiar do financiamento público não pode nunca descer abaixo de 1% do Orçamento de Estado (encontra-se hoje num valor que é menos de metade desse compromisso). O programa do actual Governo PS afirma que "a contenção da intervenção do Estado significa afirmação de liberdade". A esquerda, pelo contrário, valoriza o reforço do papel estratégico do Estado para assegurar a liberdade de criação e a igualdade de acesso aos bens culturais e recusa a imposição de uma cultura "oficial" e única pelo Estado ou pelo autoritarismo do mercado. A actual asfixia orçamental, para além de configurar uma opção ideológica pelo "fund raising" e pelo mecenato privado, não permite sequer sobreviver. Sem este mínimo, jamais se conseguirá articular uma política propriamente dita, com a carga de intencionalidade, recursos, articulação e sistematicidade que tal implica.

- uma politica cultural pela igualdade articula hoje as várias escalas de produção e difusão culturais, do local ao global. Nenhuma política é hoje apenas nacional e o domínio da cultura é uma dimensão fundamental de construção de um europeísmo de esquerda e de orientações alternativas ao nível do continente, no apoio à criação cultural e à democratização no acesso, aprofundando e dando densidade ao intercâmbio, ao cosmopolitismo e ao trabalho em rede à escala internacional.

- é preciso uma real descentralização de investimentos e de criação de equipamentos que corte a lógica de reprodução das desigualdades e de acumulação das vantagens, começando pelas escalas territoriais mais baixas.

- a elaboração de projectos culturais, tantas vezes voluntaristas e desenquadrados, deve começar com um verdadeiro diagnóstico sócio-cultural e acabar com um trabalho sério de avaliação devendo, em ambos os momentos, suscitar-se a participação activa dos destinatários;

- deve-se aliar à infraestruturação a preocupação qualitativa com os programas culturais, a excelência técnica dos equipamentos e dos recursos humanos e o seu enraizamento territorial/local/comunitário;

- deve existir um efectivo e contínuo diálogo com os agentes culturais, criando-se formas permanentes de consulta, bem como mecanismos de envolvimento das várias "comunidades culturais" na definição e implementação das medidas de política.

- tal como nas outras áreas, a politica de preservação do património não pode estar dependente da criação de fundações e fundos privados, da mesma forma que, ao nível do património material, deve ser rejeitada a mercantilização e exploração meramente comercial dos monumentos nacionais, como tem estado em discussão.

- a politica cultural para a igualdade recusa a política de "grandes eventos" culturais que tem dominado e que, face à míngua orçamental, subordina o Ministério da Cultura ao Turismo. Pelo contrário, aposta na diversidade, igualdade territorial e sistematicidade da acção politica neste domínio.

1. Equipamentos culturais

- dotar as bibliotecas, museus e arquivos centrais e regionais de meios humanos que assegurem o seu funcionamento é um compromisso contra o sufoco financeiro que tem dominado. A abertura destes equipamentos nos horários normais, bem como a presença de profissionais que assegurem as suas diferentes vocações não está hoje garantida pelo Governo e é condição sine qua non de uma política que exista.

- a ligação dos equipamentos culturais com o seu exterior deve compreender a estruturação de novos profissionalismos, em particular no que se refere à animação e à mediação cultural, enquanto capacidade de dar resposta às solicitações dos públicos, respeitando a pluralidade de pontos de vista, percepções, gostos e percursos de vida e alargando as «leituras possíveis» dos objectos e sítios culturais;

- o funcionamento em rede deve alastrar das bibliotecas públicas e escolares, dos museus e cineteatros, para todos os equipamentos culturais, passando, crescentemente, da escala regional e distrital à escala das NUTS III ou mesmo concelhia, ao mesmo tempo que promove práticas de internacionalização e circulação global de conteúdos, pessoas e experiências;

- a política de descentralização significa também que museus, arquivos e bibliotecas centrais (pense-se na Torre do Tombo, nos Museus Nacionais ou na Cinemateca) devem promover tanto quanto possível um acesso mais igualitário aos seus bens, através de protocolos com outras instituições para acções comuns, itinerância e difusão dos seus bens descentralizada territorialmente;

- o funcionamento em rede deve, igualmente, ultrapassar o domínio institucional específico para se alargar ao terceiro sector, às universidades, às empresas, aos sindicatos, às escolas e aos movimentos sociais.

2. Criação cultural e estatutos sócio-profissionais

- O apoio à criação cultural, tendo sempre em conta a fraca estruturação dos campos culturais locais, pode assentar em estruturas de residência artística, acolhendo em instalações apetrechadas com os requisitos da produção e experimentação culturais, durante períodos de tempo relativamente longos, criadores individuais e colectivos que, em contra-dádiva, se comprometeriam a desenvolver projectos e intervenções artísticos no espaço público e com envolvimento das populações

- A experiência internacional demonstra que o estabelecimento de um regime laboral e social dos profissionais das artes do espectáculo e do audiovisual, definindo regras de contratação, qualificação profissional, regime de segurança social e protecção no desemprego é uma condição de uma política cultural para a igualdade, do desenvolvimento das estruturas, da consagração de tempo à pesquisa e de investimento no campo cultural, valorizando o ofício do criador e fomentando um tecido cultural autónomo mais forte. É por isso urgente criar um quadro legal que reconheça direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, respeite e integre as características de descontinuidade e intermitência próprias destas actividades profissionais, reconhecendo a sua diversidade em termos de desgaste, regras de contratação ou reforma (o enquadramento de um bailarino é diferente do de um trabalhador do audiovisual), e assegurando a todos protecção social, nomeadamente no desemprego;

- Os apoios à criação, por seu lado, devem assentar em regras claras e não perpetuar a discriminação territorial permanente. Concursos, prémios e bolsas devem, ainda, estar atentos às formas culturais emergentes e integrar essa dimensão.

- O incentivo à criação cultural passa também por uma política forte de articulação entre educação e cultura, nomeadamente no que diz respeito às instituições do Estado - o fomento da criação cultural nas escolas públicas é um eixo central da própria formação de públicos.

3. Públicos da cultura

- as estratégias de captação e formação de públicos devem desempenhar papel central numa política de igualdade para a cultura e ser estruturantes na emergência dos novos profissionalismos ligados à mediação cultural;

- é essencial também a valorização das migrações enquanto enriquecimento de repertórios culturais;deve ser fomentada a utilização de novas tecnologias e o desenvolvimento de modalidades inovadoras de comunicação externa, sem esquecer o seu cariz instrumental face à missão de cada instituição/equipamento;

4. Território, desenvolvimento e turismo cultural

- as imagens de cidade ou as imagens territoriais devem as estruturas culturais e simbólicas aos processos de desenvolvimento, caso contrário serão meros invólucros, retóricas de marketing ou efeitos especiais... Uma boa forma de motivar para este desiderato consiste, desde logo, na visualização e compreensão da íntima ligação existente entre os sectores criativos, a fixação e atracção de população (toda a população e não apenas as classes afluentes), a consolidação de identidades, o combate a velhas e novas formas de exclusão social, a disseminação de práticas inovadoras, a criação sustentada de emprego e a qualificação dos tecidos produtivos e dos próprios recursos humanos.

- deve fomentar-se a «descoberta» de novos temas culturais ou de objectos ainda pouco explorados no mercado turístico (parques e jardins, ciências, vida marítima, etc.);

- devem desenvolver-se sistemas integrados de bilhética, favorecendo os circuitos culturais e a cumulatividade dos consumos, a par da proliferação de guichets e distribuidores electrónicos, bem como de sistemas seguros de aquisição on-line;

- deve promover-se a associação da festa e dos modos de festejar aos sítios culturais e patrimoniais, através, nomeadamente, das «artes de rua» e da «arte pública»;

- é fundamental a comunicação horizontal e vertical entre os departamentos culturais e turísticos dos organismos descentrados da administração pública e das autarquias.

5. Comunicação Social e Difusão

- uma política de igualdade para a cultura tem de passar necessariamente por uma regulação dos meios de comunicação social que assegure a pluralidade de expressões culturais, combatendo a concentração e o domínio das multinacionais de produção de conteúdos ou de edição e rejeitando a sobreposição dos seus critérios a critérios de difusão democráticos (ao nível, por exemplo, da difusão musical)

- o controlo oligopolístico da comunicação social em todas as suas modalidades, conjugado, no mundo de hoje, com o extraordinário poder de influência, de socialização e de manipulação que os media adquiriam é um risco para a democracia e viola a igualdade. É essencial por isso impedir a concentração dos meios de comunicação social e de distribuição (imprensa escrita, agências noticiosas, rádio, televisão, cabo, distribuidoras, etc...), impedindo posições dominantes que põem em causa a ideia de cultura, de informação e da comunicação enquanto bens públicos e democráticos.

- a protecção ao nível do estatuto profissional dos jornalistas, garantindo a sua autonomia profissional, o sigilo, bem como os seus direitos de autor contra a espoliação por parte das empresas e grupos de media é uma condição essencial para impedir a formação de regimes de redacção única que estreitam o pluralismo, atacam o emprego e promovem a desinformação.

João Teixeira Lopes é sociólogo e professor universitário

José Soeiro é sociólogo

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