O novo paradigma da Medicina – Medicina Integrativa PDF Imprimir e-mail
18-Mar-2009
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O novo paradigma da Medicina – Medicina Integrativa
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7. A Saúde e o poder



O poder é entendido como o espaço das instituições, do Estado e das formas colectivas de pressão e representação social. A instância dinâmica do poder é a política. A Saúde só começou a ser objecto de política a partir do Renascimento, seja através do Estado, seja através das instituições caritativas, religiosas, entre outras (ALMEIDA, 1998).

Podem ser reconhecidas três fases da evolução da saúde enquanto política na modernidade.

A primeira fase - assistencialista -, caracterizou a política de saúde até meados do século XIX. A sua tónica era basicamente a de voltar a atenção à saúde para as populações mais empobrecidas e carenciadas. Desenvolveu-se institucionalmente em organizações leigas ou religiosas que se destinavam a fins múltiplos, tais como distribuição de alimentos, educação e protecção a crianças carentes, entre outras. São exemplos destas instituições aquelas que funcionavam sob a égide das "poor laws" ou ainda as "work-houses" na Inglaterra. Nas palavras de Foucault, na figura do pobre necessitado que merece hospitalização, a doença era apenas um dos elementos num conjunto que compreendia a enfermidade, a idade, a impossibilidade de encontrar trabalho, a ausência de cuidados (ALMEIDA, 1998).

De acordo com o mesmo autor, embora o "assistencialismo" em saúde tenha nascido de forma integrada a outras políticas sociais, tendo nas instituições da sociedade civil a sua origem, pode-se dizer que o Estado sempre foi um grande provedor de serviços assistenciais de saúde, como foi o caso das medidas relacionadas com a distribuição de medicamentos nos reinados de Luís XIV a Luís XVI (França), as políticas de saúde e vigilância englobadas no conceito de polícia médica (Alemanha) e as próprias "poor laws" (Inglaterra).

O final do século XVIII marca o surgimento de uma consciência em torno do assistencialismo. A decorrência das mudanças na esfera económica e social que caracterizam o capitalismo industrial e a possibilidade de utilização generalizada da força de trabalho no processo produtivo, independentemente da sua qualificação, a nova consciência atribuía ao assistencialismo, o ócio da população e a despesa pública improdutiva, fixava a necessidade de eliminá-lo com vista à construção de uma sociedade mais laboriosa e rica.

A eliminação das "poor-laws" inglesas em 1848 pelo Parlamento é a expressão máxima desta consciência (ALMEIDA, 1998).

As novas aspirações do poder - o Estado e as classes sociais hegemónicas - no campo da saúde, deslocam-se do universo da pobreza sem assistência para o universo do trabalho, erigindo-se uma nova modalidade de política de saúde.

A segunda fase - previdencialista - inicia-se com a formação de organizações mutualistas no seio de profissionais artesãos, tendo em vista cobrir, sob a forma de seguro, aspectos ligados à saúde e à previdência para grupos de trabalhadores que se organizavam e auto-financiavam, mediante cotização, estes programas. Este modelo foi repetido nas empresas (com participação de trabalhadores e patrões no financiamento) e posteriormente generalizado para qualquer trabalhador formal (como na Alemanha recém unificada por Bismark), com a participação adicional do Estado no financiamento (ALMEIDA FILHO, 1996).

O previdencialismo estende-se da segunda metade do século XIX até finais da primeira metade do século XX como forma hegemónica de política de saúde. O seu advento não eliminou a política assistencialista, embora a tenha limitado a determinados segmentos e clientelas da população (ALMEIDA FILHO, 1996).





O previdencialismo, como forma de política social e de saúde, foi um dos principais elementos que marcaram o fortalecimento de uma sociedade do trabalho. Nesta perspectiva, apenas os trabalhadores e as suas famílias eram dignos de receber uma atenção médica decente e diferenciada daquela recebida por pobres, vagabundos e indigentes (ALMEIDA FILHO, 1996).

É verdade que o Ocidente, especialmente os países europeus, vivenciou uma generalização do assalariamento após o advento do capitalismo monopolista. Com isto, estendeu-se o acesso de quase toda a população destes países às formas previdencialistas de atenção à saúde. O advento das duas guerras mundiais abalou a consciência de que a saúde seria somente um direito dos trabalhadores. Em circunstâncias marcadas pela calamidade, como a guerra, não haveria distinção entre aqueles que deveriam ser atendidos pelos sistemas de saúde existentes.

Consciente desse problema, o Governo Britânico, a 10 de Junho de 1941 pediu a Sir William Beveridge que se encarregasse, respeitando a interpelação de planos, de um exame dos projectos nacionais, já existentes, de previdência social e serviços afins, inclusive a remuneração dos trabalhadores, e apresentasse soluções. Após 18 meses de trabalho intenso, a 20 de Novembro de 1942, Sir William Beveridge apresentou o seu relatório.

Com efeito, o advento do Plano Beveridge marcou uma nova era na atenção à saúde: - a fase universalista.

Nesta nova concepção, a Saúde deixa de ser um atributo dos trabalhadores para ser direito do cidadão, independentemente da sua inserção no mercado de trabalho e da sua condição social. A gratuidade na prestação dos serviços, a universalidade de cobertura e a integralidade do acesso aos serviços, bem como a montagem de um sistema de financiamento assente em impostos universais e não em contribuições sociais, passa a ser a tónica dessa nova estrutura da política de saúde na Europa Ocidental.

Deve-se, no entanto, levar em consideração a dificuldade de chegar ao universalismo na atenção à saúde em todas as sociedades contemporâneas. As condições que levaram as sociedades europeias a este tipo de política de saúde foram muito específicas e podem ser sintetizadas em quatro pontos:

a) - Generalização do assalariamento formal. Mais de 90% da classe trabalhadora no momento da passagem do previdencialismo ao universalismo era composta por assalariados formais nos países europeus. Isto minimizou o esforço financeiro em custear uma política de saúde universal a partir do Estado, com uma incorporação de contribuições sociais e tributação ordinária;

b) - Elevação da consciência política das massas e estabelecimento de fortes pressões sociais por melhores condições de vida;

c) - Elevação brutal da produtividade e forte crescimento económico nos anos subsequentes, propiciando o surgimento de ganhos ainda maiores na qualidade de vida ao longo dos chamados anos dourados do welfare state;

d) - Existência de um sector privado supletivo de proporções razoáveis, voltado para os segmentos da população que pudessem pagar por uma atenção diferenciada ou por cuidados mais sofisticados e individualizados.







Tais condições estavam ausentes nos países subdesenvolvidos e, portanto, a fase universalista da política de Saúde, em que pese a sua importância, é um fenómeno bastante restrito em termos mundiais.

Convém salientar ainda algumas questões de natureza geral sobre as fases das políticas de saúde.

A primeira delas é a de que a hegemonia do universalismo não eliminou a existência das outras formas - assistencialista e previdencialista - no contexto mundial. Mesmo nos países onde o universalismo é hegemónico, a política e a filosofia previdencialista sobrevive nas empresas de maior porte e complexidade, onde é possível encontrar planos de saúde especiais custeados por empregados e pela própria empresa e voltados para o mercado privado de serviços de saúde.

O que se observa na prática, é que a lógica previdencialista desaparece no público, mas ressurge no privado, trazendo efeitos líquidos no aumento da estratificação social da atenção médica. Na medida em que são criadas formas cada vez mais sofisticadas de diagnóstico e terapia disponíveis apenas no sector privado, o "universal" garantido pelo público transforma-se simplesmente num "piso mínimo" de cidadania social.

As crises económica e fiscal dos anos setenta e oitenta e os seus impactos no Estado e nas políticas sociais, trouxeram perspectivas de redução deste piso mínimo, mesmo nos países europeus. As estratégias de flexibilização, reduziram, em muitos casos, o porte dos programas sociais dos países centrais. Com isso, o sector privado aumentou o seu espaço mediante o crescimento de uma atenção diferenciada e tecnologicamente mais moderna.

Na medida em que aumenta o espaço entre a atenção à Saúde mais moderna do sector privado, voltada para aqueles que podem pagar, e o "patamar mínimo" do sector público, reedita-se o assistencialismo; não aquele voltado para os desfavorecidos e miseráveis, mas uma forma de "assistencialismo" baseada numa atenção à saúde de menor qualidade voltada para os segmentos sociais com menos recursos. Este é o caso dos EUA, por exemplo, onde programas como o "medicare" e o "medicaid" se destinam a segmentos desprotegidos da população, mas a atenção médica da maioria consiste em planos de seguro privados - individuais ou pagos parcialmente pelos seus empregadores - oferecidos e operacionalizados pelas Health Maintenance Organizations.

Uma segunda questão diz respeito ao facto de que em países em desenvolvimento, como no Brasil, se vive uma situação ainda mais díspar. Um discurso universalista: o da reforma sanitária; uma prática previdencialista para o sector formal do mercado de trabalho: a "real politique" do INAMPS e do SUS e um segmento - de mais de um terço da população do país - composto por pessoas pobres e totalmente descobertas de qualquer mecanismo de segurança social; população-alvo das políticas de corte assistencialista.

Uma terceira questão remete ao retorno de uma ideologia neoliberal, crítica ao Estado e aos seus mecanismos de protecção social. Tal ideologia só aceita a política de Saúde assistencialista voltada aos que não podem pagar, e mesmo assim com restrições. Para os que podem pagar, caberia o mercado.





Isto explica o programa de privatização dos governos conservadores europeus na passagem dos anos setenta para os oitenta. Explica também o reflorescimento da medicina de empresa, organizada sob novas bases técnicas e administrativas no seio dos países desenvolvidos.

O desenvolvimento de uma política de Saúde universalista, como parte do Welfare State, bem como a sua recente crise, marcam o auge e o esgotamento da utopia de uma sociedade de trabalho. Mas as respostas conservadoras a esta crise nem sequer chegam a vislumbrar as saídas possíveis. Não é destruindo o Estado ou adequando-o à antiga dimensão liberal que se resolve uma crise que se esgota no trabalho enquanto motor dos ideais de desenvolvimento e crescimento.

O projecto do Estado social voltado para si, dirigido não apenas à moderação da economia capitalista mas também à domesticação do Estado, perde, porém, o trabalho como seu ponto central de referência. Isto é, já não se trata de assegurar o emprego por tempo integral à condição de norma. As sociedades modernas dispõem de três recursos que podem satisfazer as suas necessidades no exercício do governo: o dinheiro, o poder e a solidariedade. As esferas de influência destes recursos teriam de ser postas num novo equilíbrio. O poder de integração social da solidariedade deveria ser capaz de resistir às forças dos outros dois recursos: dinheiro e poder administrativo.

As formas de representação do chamado "interesse colectivo" avançaram muito ao longo dos anos. Os sindicatos e os partidos políticos - duas grandes forças propulsoras dos ideais de uma "sociedade de trabalho" - foram os principais pilares das conquistas obtidas no campo dos direitos à Saúde; do previdencialismo ao universalismo. Mas nos anos recentes, a questão da Saúde não tem sido mais uma bandeira unitária destas duas instituições tradicionais de representação.

O interesse colectivo na questão da Saúde organiza-se hoje de forma fragmentária em distintas instâncias neo-corporativas, como movimentos ecológicos, movimentos de bairro, movimentos pacifistas, movimentos pró-saúde alternativa, movimentos eclesiais de base, movimentos de defesa do consumidor e da qualidade de vida, entre outras.

Tais movimentos assimilam, cada um a seu modo, a questão da Saúde como parte da sua visão de mundo.

Ao mesmo tempo, as corporações tradicionais de profissionais de saúde, Ordens, Sindicatos, donos de hospital e funcionários públicos ligados ao sector, continuam a desencadear formas de fazer representar os seus interesses.

Os desafios postos pela crise da modernidade quanto à questão do poder em Saúde passam, obviamente, por um equilíbrio democrático entre esta pluralidade de interesses. Tal equilíbrio, por sua vez, torna imprescindível a compreensão de que o público nem sempre é social e de que o privado e o interesse colectivo podem ser harmónicos.




 
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