A arte do efémero na encruzilhada da precariedade PDF Imprimir e-mail
30-Mar-2009
Artistas na corda-bambaQuerer ser actor é uma das decisões mais arrojadas nos tempos que correm. Apesar da recente elaboração de um regime de contratação de profissionais do espectáculo na Assembleia da República, o meio teatral vive mergulhado em anseios, em fortes constrangimentos financeiros e num constante jogo de cintura.

Contributo/reportagem de João Roldão e Sara Neves  

A Norte há menos companhias e menor acesso a subsídios, há ainda um público pouco habituado a ver teatro. A arte do «ao vivo», como lhe chamam, persiste como pode. Precária.

o início

«O início começa sempre com o sonho», assegura Pedro Carreira. Actor da companhia Visões Úteis, instalou-se no Porto há catorze anos para produzir e pensar teatro, vindo do meio universitário de Coimbra. Carlos Costa, membro da mesma companhia, reitera: «A ideia de vocação tem um peso mais forte [no teatro] do que noutras actividades». E elucida recorrendo a uma imagem simples: «um comerciante da área do calçado quando se apercebe que não consegue andar para a frente com o negócio, deixa de vender sapatos e faz-se à vida noutra área qualquer. Com o Teatro é diferente. Mesmo na marginalidade, as pessoas querem ficar pelo Teatro. Realizam-se a fazer Teatro, mesmo que a sua situação seja precária»

As Escolas de Teatro continuam a dar formação específica a muitos jovens e as características daqueles que estudam Teatro, nas suas vertentes diferenciadas, são distintas. «Há pessoas a estudar que já têm um curso da área do Teatro ou de outra área qualquer. Estão ali porque querem mesmo. Mas há igualmente pessoas iludidas com a fama e outras que estão no curso mas não sabem bem o que querem..», afirma Joana Magalhães, aluna do primeiro ano do curso de Teatro, vertente interpretação, do ESMAE. Sairão estes jovens dos cursos - aspirantes a actores e actrizes, a técnicos de som, a directores de cena - sintonizados com a difícil realidade do mercado de trabalho? Pedro Carreira revela-nos que por mês chegam às Visões imensos currículos, mas que dificilmente a escolha de um actor para um eventual trabalho é feita tendo por base uma análise de currículos. A teia de contactos funciona quase sempre e é mais seguro recorrer a ela. «Sai imensa gente das escolas na idade certa (o que não ocorria antigamente) mas um pouco iludida» diz-nos. As escolhas das companhias são invariavelmente direccionadas. Ricardo Alves, encenador da Palmilha Dentada, é bastante elucidativo: «Se precisar de alguém para um espectáculo, prefiro contactar um amigo do qual sei com o que posso contar, do que um profissional com um bom currículo.». A necessidade de arriscar está presente no mundo precário do Teatro. Ricardo Alves aponta o futuro, «Faz falta um mercado de marginalidade no Porto, gente que se envolva em novos projectos...É imperativo que as pessoas arrisquem e não se deixem ficar».

Joana Magalhães sente que há a percepção de que para se dar o «salto» no final do curso é preciso ir mostrando credenciais ao longo deste, trabalhando paralelamente ao estudo. Ainda que curta, a sua vivência já lhe permite avistar precariedade(s). «O curso é muito exigente e desgastante. Põe-nos constantemente à prova. Por outro lado, há muita gente a trabalhar para sustentar os estudos, e como o curso nos deixa pouco tempo livre, o esforço é enorme. A vida pessoal ressente-se».

Tiago Vouga, aluno da mesma escola no curso de Teatro vertente de Direcção de Cena, e actor no Teatro Universitário do Porto, releva a utilidade de experiências de trabalho na área de teatro ao mesmo tempo da formação: «Há muita gente a estudar e a trabalhar ao mesmo tempo, é importante tal acontecer ao longo da formação» assume. Por outro lado, Tiago acha que «Portugal tem um mercado muito escasso e portanto as pessoas são mesmo obrigadas a trabalhar noutras coisas para sobreviver». «Muitas vezes isto [trabalhar em Teatro] é precário porque é bastante dificil gerir o dia-a-dia» atira convicto.

homens e mulheres de biscates

«Nos meses mais duros penso que devia ter escolhido outra profissão, mas com o passar dos anos fui criando defesas: amealho quando posso e invisto na minha formação». Quem o diz é Rute Pimenta, que está a concluir o 4ºano de Teatro (já tem o bacharelato) no ESMAE e é ao mesmo tempo programadora de um serviço educativo, no Teatro do Campo Alegre. «Mal acabei o bacharelato comecei logo a trabalhar, encadeando trabalhos. Rapidamente me apercebi que tinha de arranjar trabalhos paralelos para conseguir pagar a renda, comer, enfim viver..». Há dez anos que faz desta a sua vida. Procurou outras formas de ganhar dinheiro como as dobragens ou as escolas para dar aulas de Expressão Dramática. No seu discurso, o inacreditável é intermediado por vezes pela conformação, «continuo a achar que um artista é um ser pensante que deve fazer escolhas, por isso não tenho trabalhado tanto com o actriz», revela.

A opinião de Tó Maia, actor da companhia Teatro do Aramá e encenador portuense, sustenta a história de vida de Rute. «Dificilmente um actor sobrevive sem ter outra actividade», afirma. Tó possui diversas actividades paralelas: é actor e mentor da companhia já referida, dá aulas de expressão dramática e encena grupos de teatro universitário. Apostou igualmente no Teatro Infantil. «A precariedade pode assim ser voluntária» assegura. E volta à tecla do sonho. «As pessoas mais velhas que cá andam ganharam o seu lugar. As que não conseguiram espaço e carreira ganharam juízo e partiram para outra. Depois há os jovens. Ainda há muito sonho por detrás disto».

Nuno Simões, actor, é mordaz na análise: «os actores são explorados nas companhias, nas escolas e nas televisões. São homens e mulheres de biscates, que fazem tudo por tuta-e-meia porque precisam de comer..». O seu percurso é diferente daquele que tinha idealizado pois desde cedo se apercebeu da singularidade da sua «profissão». Começou em 1992 como actor freelancer, fez 400 km para vir estudar para o Porto e teve de se sustentar como pode ao longo do curso, pois o apoio financeiro dos pais era limitado. «Fiz de quase tudo, desde trabalho de secretaria a limpezas na escola onde tirei o curso. Teria preferido estudar continuamente mas era preciso comer e optei pelo trabalho»

os direitos no caixote

«Eu tenho uma prótese dentária que poderia ter sido evitada se tivesse tido oportunidade de atempadamente ter feito tratamentos. Mas claro, era preciso comer. E o tecto, quem o pagaria se investisse nos dentes?». A interrogação de Nuno Simões reveste-se de revolta. No meio teatral poucos são os que têm, passe a expressão, possibilidade de adoecer. Por um lado as dificuldades financeiras impõem contenção nos gastos relacionados com a saúde. Por outro, a protecção na saúde é inexistente já que muitos dos profissionais preferem não descontar para a Segurança Social. «Na minha actividade como actor, e já lá vão 16 anos, nunca fiz descontos para a Segurança Social. É incrivel não é? Serei um fora da lei?!», questiona Nuno Simões. Ricardo Alves garante que «há muita gente que não desconta (está fora do sistema), e se não desconta muito menos tem acesso a esquemas de protecção privados para salvaguardar o futuro. É muito preocupante».

Tendo em conta muitas destas preocupações, a GDA - Gestão dos Direitos dos Artistas, Intérpretes ou Executantes - uma sociedade legalmente autorizada a efectuar a gestão colectiva dos direitos conexos dos Artistas, da qual Nuno Simões faz parte desde 2005, criou um fundo social para os cooperadores. A ideia era dar resposta às diversas situações na área da saúde, em diferentes especialidades médicas e a preços reduzidos. Para Nuno os resultados são esclarecedores das carências: «é inacreditável o número de artistas que passaram a frequentar os serviços de estomatologia, por exemplo».

A actividade da GDA não se restringe ao fundo social. A GDA é uma entidade de gestão colectiva de direitos dos artistas (actores, músicos, bailarinos ...), uma cooperativa de entidade pública, que apoia actvidades culturais nomeadamente com bolsas de estudo, apoio a projectos pontuais, festivais, entre outros. A sua actividade principal é a cobrança colectiva dos direitos de Propriedade Intelectual, assim como a sua distribuição pelos artistas titulares. «Feita a cobrança há percentagens legais que são retidas - pela exploração das obras dos artistas nas televisões e rádios por exemplo - e que revertem para os artistas traduzidas em descontos na aquisição de serviços médicos (o tal Fundo Social) e através de apoio financeiro a projectos culturais (Fundo Cultural)» explicita Nuno Simões. Para Ricardo Alves, a GDA tem trabalhado bem, «através da exigência dos direitos conexos têm conseguido bastante dinheiro a muita gente», sustenta.

Mas a precariedade não se revela só no acesso à saúde. Pelo facto de a grande maioria de trabalhadores ligados ao meio teatral fazê-lo com base na prestação de serviços - passando recibos verdes - o subsídio de desemprego, o subsídio de férias e a estabilidade laboral surgem como miragens. Rute Pimenta passa recibos verdes e paga à Segurança Social pelas três actividades em que se envolve: formadora, programadora cultural e actriz. Nuno Simões esteve oito anos numa companhia de teatro sustentada a ser actor, director de cena, produtor, e revela que «durante esses anos os livros de recibos verdes foram inúmeros». «É penoso saber que a maior parte das companhias continua a trabalhar dessa maneira», deixa escapar. Os recibos verdes fazem igualmente parte do dia-a-dia de Tó Maia. «Devo algo à Segurança Social mas não devo nada às Finanças», revela. Ainda assim, insiste, «não é possível a assiduidade de pagamento porque nós recebemos em alturas diferentes e, ainda por cima, diferentes quantias»

o estatuto

Foi neste cenário de vazio de um regime laboral, fiscal e de protecção social, que em Abril de 2007 se discutiu na Assembleia da República o projecto-lei do novo Estatuto do Artista, sob a tutela de Isabel Pires de Lima. Em 30 de Novembro do mesmo ano a Lei foi aprovada e a 7 de Fevereiro é publicado o novo Estatuto de Contratação dos Profissionais do Espectáculo. Isto, após anos e anos de reinvidicação por parte dos mesmos e de sucessivas promessas eleitorais frustes.

Muitas são as falhas apontadas ao diploma, desde logo a flagrante exclusão do estatuto da protecção social ao artista que foi remetida para um novo diploma a ser elaborado a posteriori pelo Ministério do Trabalho e Segurança Social [A PLATEIA*, uma plataforma de companhias e profissionais de Teatro e Dança da Área Metropolitana do Porto, em conjunto com a GDA, entregou em Dezembro uma proposta de regulamentação da segurança social que tem em conta a intermitência dos profissionais desta área]

Por outro lado, questiona-se a distinção injustificada das profissões ditas criativas das técnicas, sujeitas à mesma intermitência, trabalho intensivo e entidades empregadoras. As críticas somam-se no que diz respeito à regulamentação da propriedade intelectual, que agora prevê a possibilidade das cobranças dos direitos de autor poderem ser exercidas individualmente se essa for a vontade expressa dos respectivos titulares, dando azo a que os empregadores pressionem os artistas a abdicarem dos seus direitos enquanto autores.

Outro ponto fortemente contestado é que o actual estatuto, com a pretensa intenção de anular a precariedade vinculada ao regime anterior de recibos verdes, estará muitas vezes a proteger empregadores mas não trabalhadores. «Acaba de facto com os recibos verdes, que eram a única forma de recebermos, e inaugura os contratos a termo que a lei geral não previa mas que abre portas à perversão laboral» alerta Catarina Martins, actriz das Visões Úteis, ilustrando com a possibilidade de «músicos que pertencem ao quadro de uma orquestra poderem agora ser contratados apenas por três meses e voltar a sê-lo só quando fizerem falta...Não dá jeito pagar férias e convém sempre ter menos trabalhadores quando há menos trabalho». A mesma actriz ressalva contudo que na situação anterior dos recibos verdes muitos eram os trabalhadores que ‘disfarçados' de independentes não tinham como «exigir o que lhes era devido. Quem tem agora alguma protecção não pode dispensá-la.». Carlos Costa alerta ainda para o paradoxo que cria o novo estatuto ao obrigar as companhias a garantir subsídios elementares de encargo social, e com isto estas justificarem salários inferiores aos anteriormente praticados o que resulta na prática em que «o actor não vai ter necessariamente melhores condições», classificando categoricamente que «independentemente das questões políticas, a lei que saiu é má, está mal redigida, mal estruturada e é de difícil aplicação»

O recém-Estatuto assume-se assim como um documento histórico, por vir pela primeira vez regulamentar a actividade dos profissionais do espectáculo ainda que de modo ‘precariamente' dirigido, sendo encarado na generalidade da classe como deficiente e inadaptado, e eternizando o sentimento de que «continuaremos nós os artistas a viver o presente no joelho sem direito(s) a pensar o futuro», Nuno Simões.

O actual ministro da Cultura, José António Ribeiro, já fez saber que o Estatuto cumpriu todas as regras processuais e que como todas as leis, esta também terá que ser cumprida. Já Ricardo Alves parece ter a sua razão ao vaticinar «O trabalho de actor é sinónimo de precariedade e não é o novo regime que vai modificar isso».

cá em cima e lá em baixo

O trajecto das Visões Úteis é tido como um caso de sucesso no meio de produção e criação teatral. Projecto sustentado, cresceu paulatinamente, tendo nascido de uma opção clara pelo Porto. «Viémos dos confins [do meio académico de Coimbra há 14 anos], não conhecíamos ninguém...Apostámos no Porto porque era o melhor local para nos lançarmos. Se fosse hoje, as Visões não sobreviveriam no Porto, o mercado está estranho e não há apoios», afirma Pedro Carreira. Já Carlos Costa, seu companheiro de grupo, assegura que «em termos criativos há espaço para muito mais [no Porto] mas não para se viver disto» já que «as dificuldades sentem-se tanto mais quanto mais incipiente for a indústria da actividade em causa». Por outro lado afirma que «Lisboa está paredes-meias com o cinema, com as dobragens, a publicidade ou a televisão...há mais portas abertas». Ricardo Alves lança outro facto para o domínio da reflexão: «no Porto não há tradição de ir ao teatro, não ha publico para Teatro e é difícil»

As diferenças entre Lisboa e Porto são efectivamente gritantes no que diz respeito ao número de companhias existentes e ao número de subsídios atribuídos às mesmas, ainda que, os concursos sejam actualmente, e na opinião de Pedro Carreira, «mais objectivos, criteriosos e fiscalizados».

a vida das companhias

Estas diferenças são mais um dos inúmeros factores que colocam em causa uma actividade desafogada das diversas companhias a permanecer activas a norte. Ricardo Alves dá o mote: «é evidente que tudo isto é precário.». Contudo, o percurso ponderado e objectivo da Palmilha Dentada singrou na cidade. Como? «Construímos e educámos o nosso público. E isto não se fez de um dia para o outro. Não descuramos a divulgação, actualizamos o blogue, chegámos a um maior número de pessoas através do programa que mantivémos na Antena1». E têm qualidade.

De realçar que também ali o sonho permanece intacto - há já alguns anos, os actores abandonaram os cursos superiores em que se encontravam, para enveredarem pelo Teatro.

Pedro Carreira tem uma visão curiosa sobre a evolução das Visões. «Pode-se considerar que passámos de uma precariedade para outra precariedade. Crescemos e temos um projecto sustentado, mas hoje em dia já não somos jovens (deixou de haver apoio do IPJ), a Gulbenkian modificou a forma como apoia ao nível das bolsas e a Câmara do Porto ignora a Cultura. Temos a sobrevivência garantida até ao final de cada ano mas e depois?», questiona.

Já Tó Maia e a sua companhia - o Teatro do Aramá - sentem na pele os obstáculos mais elementares. «Há muita dificuldade em conseguir garantir uma sala de espectáculos pelo tempo que realmente uma peça necessita. Nomeadamente no meio mais marginal isso é determinante para a afluência à mesma», afirma o encenador e actor.

pode?

A precariedade manifesta-se assim de formas diversas. Trunca percursos pessoais, condiciona a sobrevivência de companhias, reforça assimetrias. Atinge a dignidade e as legítimas aspirações dos profissionais desta área. Do público também.

A precariedade [não só no Teatro, naturalmente] fere a liberdade. Como diz a canção, pode alguém ser livre se outro alguém não é?

 
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