O interesse público da criação artística |
25-Jun-2009 | |
Comentário à proposta de programa eleitoral do Bloco de Esquerda (Capítulo 7 - Abrir a sociedade de informação e da cultura): Concordando no essencial com a proposta de programa do Bloco de Esquerda no que diz respeito às políticas culturais, consideramos que a sua actual formulação não clarifica suficientemente o interesse público da criação artística. Nem do ponto de vista da sua produção - enquanto garante e manifestação por excelência da liberdade de expressão dos indivíduos mas também do património imaterial da sociedade - nem do ponto de vista da sua recepção por parte dos públicos - enquanto factor de enriquecimento cultural, com consequências no grau de literacia, de cosmopolitismo e de humanismo dos indivíduos. Contributo de Nuno Serra e Pedro Rodrigues Encontramos com frequência potenciais contradições entre as afirmações de princípio (que subscrevemos na íntegra) e as medidas práticas preconizadas, umas vezes demasiado ambíguas, outras com tendência para submeter a criação artística a lógicas instrumentais que a ela são alheias - o turismo, a valorização do património histórico, a rentabilização dos equipamentos e dos investimentos públicos. Consideramos assim que capacitar a cultura enquanto realidade sistémica, conferindo-lhe um sentido estruturado e estruturante e uma materialidade concreta e delimitada em termos de política pública, deverá constituir uma das ideias fortes e centrais do programa do Bloco para o sector. Trata-se, no fundo, de equacionar a adequada relação entre cultura e território, fundada no princípio do direito ao acesso a bens culturais e assente num sistema de recursos, equipamentos, estruturas e projectos, que assume um conceito de rede que não se restringe a lógicas de interacção relativamente efémera entre estruturas e agentes, nem se subsume no conceito de "turismo cultural". Ambiguidades que subsistem Apesar de se afirmar que as redes não podem ser "fins em si mesmo" e de se defender "um mínimo de estabilidade" para os pólos em que elas devem assentar, alertando-se para a sua potencial perversidade, a proposta de programa não especifica as formas defendidas para reforçar tais pólos, sejam eles equipamentos físicos, sejam estruturas de criação espalhadas pelo país. Mantém-se uma crença exagerada no efeito descentralizador do conceito de rede (muito à semelhança do que tem sido o discurso dos governos do bloco central, quer em Portugal, quer à escala europeia), sem acautelar as condições em que as zonas mais fragilizadas podem efectivamente participar neste modelo. A defesa de "apoios à itinerância e à descentralização", por exemplo, seria com vantagem substituída pela defesa de orçamentos condignos para os teatros e centros de arte que existem do país, dotando-os de condições para que cumpram a sua missão de serviço público de forma autónoma, responsável e responsabilizável. As redes (e a poupança de custos que permitem - porque é essencialmente para isso que servem) devem ser encaradas como forma de melhorar e complementar um bom funcionamento e nunca como mecanismos para disfarçar - perpetuando-as - fragilidades crónicas. Por outro lado, o leque de entidades que se supõe deverem integrar o domínio alargado das redes defendido no programa é muito poroso e abrangente, ao atender de modo pouco significativo à necessidade de adequar a natureza das entidades às finalidades de uma política estruturada e coesa de apoio às iniciativas culturais (o que é, por exemplo, o terceiro sector em termos culturais - o que é que ele integra?). Esta amplitude e indefinição pode contribuir perigosamente para a assumpção de um conceito excessivamente difuso de redes, que pouco favorece o objectivo da sua organização sistémica, estruturada e claramente definida. O reforço do investimento público na criação artística está bem defendido na proposta de programa, mas será necessária uma alteração substancial nos critérios e no modelo de financiamento directo da criação artística, que o texto enuncia sem concretizar. Tal reforço - defendemos - só será eficaz se for acompanhado de uma clarificação dos fins a que se destina o investimento: separando apoios à criação artística de apoios à programação (princípio programático do actual governo objectivamente desrespeitado), bem como distinguindo categorias de beneficiários - estruturas de criação artística consolidadas e com potencialidades comprovadas, estruturas em fase de consolidação, artistas individuais e novos criadores. Todos eles têm um papel específico a desempenhar no sistema artístico nacional, mas têm responsabilidades, encargos e necessidades diferenciados. Devem, por isso, ser objecto de diferentes tipos de contratualização com o Estado e sujeitos a diferentes tipos de avaliação, que tenham em conta as especificidades (de área artística, de dimensão, de ambição, de localização geográfica) de cada caso particular. De igual modo, a necessária revisão da legislação laboral no sector artístico e em áreas afins verá confirmada a sua ineficácia caso não seja precedida de uma intervenção estatal no mercado "empregador", onde predominam entidades sem fins lucrativos e em regime de mera sobrevivência. O reforço das estruturas de criação (garante da estabilidade do "mercado laboral" neste sector de actividade) afigura-se uma vez mais como indispensável não só para a prossecução dos objectivos de serviço público que devem nortear uma política de esquerda para a cultura, como para a própria garantia dos legítimos direitos dos profissionais da criação artística. No actual panorama da criação artística independente financiada pelo Estado, não é possível defender trabalhadores sem defender os empregadores. A instrumentalização da criação artística Compreende-se e elogia-se o reconhecimento dos efeitos benéficos da criação artística noutras áreas, como o turismo. Poder-se-ia até ir mais longe, reflectindo sobre os estudos que evidenciam o impacto económico das "indústrias criativas". Julgamos, no entanto, não ser este o objectivo de uma política cultural e que não deve ser essa a preocupação do Ministério da Cultura ao definir as suas prioridades - será, talvez, a do Ministério da Economia. Aliás, todas as propostas que possam legitimar processos de "diluição" da cultura no conjunto das políticas públicas, mesmo as propostas bem intencionadas, correm seriamente o risco de perpetuar, e até agravar, a irrelevância a que o sector tem sido sistemática e dramaticamente sujeito nos últimos anos. Neste sentido, "fomentar a descoberta de novos temas culturais ou de objectos pouco explorados no mercado turístico" constitui uma clara instrumentalização da criação artística - fomentar uns temas significa desvalorizar outros - e é aliás contraditório com o princípio, correctamente enunciado no programa, de que a criação cultural "deve prosseguir fins que lhe são intrínsecos". Do mesmo modo, não se percebe a tónica colocada na dimensão festiva e nas "artes de rua" ou na "arte pública" como estratégia de valorização dos "sítios culturais e patrimoniais". A que propósito? Porquê a festa? Porquê artes de rua? Porquê, sequer, artes performativas associadas ao património? Do mesmo passo, desacredita-se a capacidade de atracção dos sítios patrimoniais enquanto tal e reduz-se a criação artística ao papel de mera animação cultural. É claro que já todos nós assistimos a concertos memoráveis em castelos medievais e a magníficas peças de teatro em edifícios pombalinos e a exposições muito bem enquadradas em conventos quinhentistas. Mas também todos nós já assistimos a grandes barbaridades, pseudo-artísticas e pseudo-históricas, nos mais belos sítios patrimoniais deste país. Se calhar, até levaram muita gente a conhecer tais sítios e mantiveram-nos animados. Mas é isso que se quer da arte? Também o património tem um valor intrínseco, que deve ser valorizado e dignificado. Cabe a uma política de esquerda recusar abertamente a dicotomia inventada pela direita, que pretende opor património histórico à criação artística contemporânea. Ambos têm necessariamente que co-existir e ser dignamente financiados, sem que seja obrigatório (nem proibido) fazer teatro nas ruínas nem colocar estátuas num espectáculo de dança. Também não se entende a desproporcionada preocupação com a criação de "novos profissionalismos", nomeadamente na intermediação e na mediação cultural. A distância que separa as criações artísticas (e os seus autores) dos seus públicos (de todos os públicos) tem sido artificialmente empolada por preconceitos que se reproduzem continuamente - na escola, na comunicação social, nos discursos políticos. Existe hoje, de facto, um número razoável de jovens formados em animação cultural, vítimas de uma proliferação não pensada de cursos universitários nesta área. Confrontam-se com sérias dificuldades quanto à sua inserção no mercado profissional, precisamente porque este é deficitário e porque a sua formação é desadequada. Acabam na maior parte das vezes por trabalhar no sector da assistência social (para o qual, aliás, estarão melhor apetrechados), saindo portanto do âmbito da discussão sobre política cultural. Mais importante do que criar estas carreiras, acreditamos, é articular com o Ministério da Educação e com o Ministério do Ensino Superior a criação e a consolidação de cursos nos diferentes graus de ensino (do secundário ao superior) em áreas claramente deficitárias em Portugal: para além das áreas artísticas propriamente ditas, as áreas que a ela estão directamente associadas - técnica de palco, cenografia, produção e gestão cultural, entre outras. Administração central e autarquias O programa pretende (e bem) ser o mesmo para as duas eleições que se avizinham - autárquicas e legislativas. A política cultural é um dos domínios onde mais urgente é a articulação entre os dois níveis de governação e isso não é claro na actual formulação do documento. A proposta de celebração de contratos-programa entre Governo e autarquias para enquadrar a actividade das estruturas de criação (sobretudo as que estão sediadas fora de Lisboa) e o funcionamento dos equipamentos culturais públicos nas principais cidades médias do país parece-nos um exemplo claro dessa articulação. Deve atribuir-se ao Ministério da Cultura uma dotação orçamental específica para este tipo de intervenção, capaz de dar resposta ao papel estruturante e organizador do território que se atribui a tais contratos. Do mesmo modo, será importante definir e criar mecanismos locais de acompanhamento das políticas autárquicas em matéria cultural, que incluam e estimulem a participação dos agentes das diferentes áreas e intervenham no desenho dos protocolos a celebrar entre o poder local e a Administração Central. Notas Deixamos, finalmente, duas sugestões de pormenor que pretendem contribuir para a clarificação do sentido do texto:
Nuno Serra e Pedro Rodrigues {easycomments} |