Comentário de José Manuel Sobral
04-Mar-2008
José Manuel SobralSobre o "Magalhães" e as novas tecnologias, em geral: creio que se deve sublinhar o facto de ele ter sido introduzido, pois o acesso às novas tecnologias é fundamental para os jovens que se sentem excluídos socialmente pelo facto de não disporem de um instrumento de consumo absolutamente corrente nas classes médias.

O computador - neste caso um mini-portátil - permite-lhes aceder à net, comunicar via Messenger ou e-mail, fazer downloads de jogos, etc. Não o possuir - tal como não ter telemóvel, mp3 ou Ipod - é um sinal humilhante de pobreza, e constitui fonte de estigma.

Posto isto, estou totalmente de acordo que o Magalhães não vem resolver quaisquer problemas básicos da aprendizagem ou do combate ao insucesso escolar. O discurso hiperbólico sobre as novas tecnologias, que vem de há vários anos, confere-lhes um valor que elas de facto não têm. Têm um papel secundário, embora relevante, para quem não dispõe de bibliotecas familiares - ou só tem ao seu alcance as insuficientemente apetrechadas na escola - como fonte de informação, sendo, aliás, um meio utilizado com prazer pela maioria (ao contrário do que sucede com o recurso ao livro). Em contrapartida, tem possibilitado o plágio, o corta e cola, que abundam em todos os níveis do ensino em Portugal (dos mais básicos ao superior). Concordo com a desmistificação feita do papel mirífico atribuído às novas tecnologias por este governo, na linha aliás dos anteriores. Estas não substituem o aprendizado por outras vias, como a leitura, e não asseguram a formação de uma consciência crítica. A este respeito sugiro a leitura do artigo do Prof. Carlos Fiolhais, publicado no Público, ao que creio no dia 26 de Fevereiro.

Creio que se pode e deve insistir no facto de a actual equipa ministerial não ter tocado em pontos fundamentais do funcionamento da escola, focando sobretudo a sua atenção no papel dos professores, sobre os quais foi colocado o ónus da responsabilidade pelo insucesso escolar.

Creio que, a este respeito, uma política de esquerda deve insistir nos seguintes elementos:

- Não foram revistos os currículos, excessivamente pesados, com grande número de disciplinas, algumas das quais praticamente equiparadas, quando havia que respeitar especificidades (reporto-me, por exemplo, à ideia caricata de fazer testes escritos e promover a memorização de conteúdos a Educação Física, para a transformar numa cadeira como as "outras");

- Não foram revistos radicalmente os programas de algumas disciplinas; reporto-me a um que conheço bem, que é o de História do ensino básico; recentemente, um enteado meu, de 14 anos, teve que "empinar" para um teste nomes e factos - pois não eram conteúdos - sobre a 1ª Guerra Mundial, a Revolução Russa (bolcheviques, Lenine, etc.), a crise de 1929, o New Deal, o modernismo nas arquitectura e nas artes, incluindo Stravinski, etc., Fernando Pessoa e os seus heterónimos. É uma criança que está num lar de classe média, onde mesmo assim eu próprio, formado em história, e capaz de lhe dizer alguma coisa sobre vários dos tópicos, me vi com dificuldades para enfrentar a tarefa. Seguiram-se o fascismo, o nazismo, etc. O manual era miserável, feito de breves alusões sem conteúdo aos factos, mas nenhum manual pode informar minimamente sobre estes dados em poucas páginas. É inqualificável o que se passa a este nível. Que eu saiba não se tocou nos programas, o que constitui tarefa inadiável.

- Decorre do que acabo de dizer que a escola que temos, em vez de construir, como uma escola democrática, uma via de aquisição de competências para todos, sanciona e agrava as desigualdades sociais entre os seus alunos. Está formatada para crianças da classe média, com capitais económicos e culturais já apreciáveis. Capitais económicos para pagar a explicadores um aprendizado que a escola não pode proporcionar. Capitais culturais para a família poder constituir-se como uma fonte de informação e aprendizado.

- Penso, por isso, que uma proposta de esquerda deve assentar na transformação das escolas em verdadeiros centros de aprendizado. Isto implica gastar mais dinheiro com a educação, contratando um número significativo de professores para aulas suplementares. E sobretudo para estes exercerem o papel de tutores dos alunos com dificuldades. Essa tutorias seriam sessões de trabalho com um número muito reduzido de alunos, para individualizar o mais possível a relação com o professor. Embora partilhe a generosidade das vossas intenções e ser contrário à divisão das turmas em turmas de bons e de maus alunos, que muitas escolas desenvolvem de modo sub-reptício (ponto 4.3), não sei se misturá-los dará os resultados esperados. Empenhar-me-ia nas tutorias, mesmo que isso levasse ao reforço da identificação dos alunos "maus" (mas isso é um facto, mesmo sem elas).

- Essas tutorias deverão estar associadas ao acompanhamento multidisciplinar dos alunos em risco, com funcionários treinados para lidar com essas situações. Esse acompanhamento tentará apurar e fornecer as pistas de orientação que ajudem o jovem na descoberta de uma vocação;

- As turmas têm de ser reduzidas, como é proposto (ponto 1), pois de outro modo será muito difícil manter uma relação pessoal com os alunos, que é fundamental para o sucesso da aprendizagem.

- Também é necessário reforçar o papel das bibliotecas como verdadeiros centros de documentação, onde os alunos de todas as classes possam encontrar a informação que os alunos da classe média encontram em casa. Em resumo, o trabalho fundamental dos alunos deveria ser feito na escola, à imagem do que se faz, por exemplo, nas melhores universidades internacionais. Não se discerne por que é que os mais jovens devam ter um tratamento diferente, que condena muitos ao insucesso.

- Finalmente, deve reforçar-se a oferta de horários extra-laborais, para levar à escola um contingente acrescido de jovens e adultos, que desejem ampliar os seus conhecimentos e a sua formação.

Estou completamente de acordo que a educação deve assentar tanto na aquisição de um saber socialmente útil, como na de uma consciência de cidadania democrática (como sugerem no ponto 1). Esta consciência tem necessariamente um teor igualitário, no que respeita ao usufruto de direitos económicos, sociais e políticos. É importante manter horários adequados das disciplinas que mais podem contribuir para estes objectivos. É importante tratar da Educação Sexual, algo fundamental em termos de cidadania, ainda para mais quando a maturação sexual se dá com os jovens a frequentarem a escola. Entendo que a educação sexual, como parte da educação para a cidadania, devia ser transversal a toda a actividade escolar.

Sobre o ponto 2. Estou de acordo com a sua mensagem multicultural e tenho constatado que muitos imigrantes africanos lamentam o facto de os seus filhos não falarem as línguas das suas terras (ou crioulos). Todavia, se for assegurado esse ensino, terá também de se providenciar o ensino de outras línguas - russo, por exemplo - para não haver discriminações. Talvez a maneira de solucionar o problema fosse articular a acção das escolas com a das associações de imigrantes e o ACIDI, que poderiam dar o seu contributo a este respeito.

Todavia, deve sublinhar-se que o empenho da escola no aprendizado do português por esses alunos, para que ele não constitua um factor de inferiorização e subordinação desses estudantes. Muitos desses imigrantes ou filhos de imigrantes são portugueses legalmente e sentem-se como tais, apesar de terem de enfrentar a discriminação ou manifestações racistas. Mesmo os que regressem aos seus países, terão de ser utilizadores competentes da língua oficial, que é a portuguesa. Também aí, o seu uso comporta dimensões de poder.

Sobre o ponto 3, Autonomia e responsabilidade das escolas, estou basicamente de acordo com todos os pontos. Acho que se deve sublinhar a recusa da instauração de mecanismos de clientela partidária na assunção de lugares de chefia nas escolas, como sucede por toda a parte no aparelho de estado em Portugal.

Sobre o ponto 4. Completamente de acordo com o que se diz no ponto 4, quanto à formação de "guetos". Devem interditar-se as práticas de "cunha" nas matrículas, que fazem com que determinadas escolas acabem por ter maior homogeneidade no desempenho com sucesso...e outras, o contrário. Já bastam os efeitos da própria segregação espacial, que estas práticas agravam. Tem de reconhecer-se que as escolas das áreas mais carenciadas devem ser objecto de intervenção prioritária e de reforço de meios.

Penso que não se devem esquecer os temas da segurança (pois não devem constituir uma reserva dos mais conservadores). Deve garantir-se a segurança dos professores - é uma das suas razões de queixa - dos funcionários e dos alunos. Casos como os acontecidos no Colégio da Casa Pia, onde um estudante foi assassinado, devem ser evitados. A intimidação física, quer de professores face a alunos, quer entre alunos, quer de alunos (mais jovens) perante professores ou funcionários (mais velhos), ou mulheres - configurando uma violência de género - deve ser combatida.

Deve promover-se a dignificação da função docente, como elemento fundamental da escola. O estado deve assegurar a segurança do emprego e o direito à progressão na carreira. As instituições de ensino superior devem providenciar meios adequados de formação actualizada aos docentes e adaptados às suas necessidades específicas.

José Manuel Sobral é investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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