Escola pública: as mudanças necessárias
20-Fev-2009
Nuno Serra fala da mudança de que a escola necessita1. Perante uma desestabilização sem precedentes no quotidiano das escolas, com gravíssimas consequências para alunos, pais e professores, dir-se-ia que uma assinalável transformação terá sido operada na educação ao longo dos últimos anos. A equipa de Maria de Lurdes Rodrigues passou, porém, ao lado das questões verdadeiramente essenciais, erigindo o seu mandato a partir de preconceitos e pressupostos inquestionados, reveladores de uma visão desadequada, tecnocrática e superficial do sistema educativo.

Contributo de Nuno Serra, enviado para igualdade@bloco.org    


2. Faça-se a justiça de reconhecer que medidas importantes foram implementadas, como o aumento da estabilidade do corpo docente nas escolas, a escola a tempo inteiro ou as melhorias na acção social escolar. Mas mesmo em iniciativas meritórias, a tutela revelou-se em regra trapalhona na sua concretização e insensível à realidade, provocando efeitos contrários à intencionalidade dessas iniciativas. A convicção de que as mudanças no sistema educativo só se fazem contra os seus agentes foi um dos maiores erros deste governo e deste ministério.

3. O governo falhou no essencial: melhorar as condições de ensino e aprendizagem, tomando como referência a organização da escola e as suas dinâmicas quotidianas. Uma tecnocracia, fundada em lógicas cegas de engenharia social, sobrepôs-se e desvalorizou a noção de escola enquanto unidade orgânica. A uma abordagem compreensiva dos processos, preferiu-se um positivismo mecanicista e redutor, na crença de que os mais ínfimos pormenores do sistema se dirigem, segmentados e parametrizados, a partir da 5 de Outubro.

4. Algumas das principais medidas adoptadas (avaliação de desempenho e novo modelo de gestão), tiveram como pilares a desconfiança e a desconsideração pelos docentes. E este ponto de partida ditaria o ponto de chegada. Tornou-se indiferente que o processo de avaliação fosse manifestamente desprovido de credibilidade, desde que tornasse possível condicionar a actividade docente. Passou a ser irrelevante a perda de autonomia da escola na sua capacidade de planeamento estratégico, se tal viabilizou a instauração de cadeias de comando eficazes.

5. Ao fim de quatro anos, a política educativa do partido socialista deixa uma marca muito forte: o desprezo absoluto pela qualidade dos processos e a entronização dos resultados, seja a que preço for. Exactamente a mesma filosofia que guiou os gestores bancários que nos colocaram perante a actual crise financeira, ao não olharem a meios para atingir metas e objectivos, sacrificando a verdade e a natureza perdurável das coisas. É urgente portanto voltar às questões essenciais da educação.

As mudanças necessárias

6. A qualificação das condições de ensino e aprendizagem deve ocupar o lugar central da política educativa. O que aponta para duas questões fundamentais: a realização de uma profunda reforma curricular e uma reorganização do sistema educativo que permita criar efectivas condições de acompanhamento individualizado dos alunos. Tanto uma como outra pressupõem uma autonomia da escola balizada por parâmetros e princípios que assegurem a sua natureza de escola pública, inclusiva e democratizante.

7. Concordância total com a proposta inscrita no ponto 1, relativa à reforma curricular, uma das matérias centrais que a actual equipa ministerial simplesmente ignorou. Deve desenvolver-se de modo participado, envolvendo docentes, associações científicas e de professores, instituições de ensino superior os departamentos vocacionados do Ministério da Educação. Trata-se de repensar o que se ensina e como se ensina, de distinguir o essencial do acessório e de remover do quotidiano dos alunos muitos dos inúmeros retalhos que fazem a manta em que o ensino se tornou.

8. A reorganização da escola e das actividades lectivas pressupõe uma necessária diminuição do número de alunos por turma (medida igualmente proposta no ponto 1) e o estabelecimento de regras claras na sua constituição (ponto 3), capazes de fomentar uma verdadeira igualdade de oportunidades. Não é aceitável que a escola pública diferencie turmas em função das origens sociais dos alunos ou dos seus resultados. As "boas turmas" são também as que têm os melhores professores e os melhores horários. A reprodução da desigualdade social pela escola tem aqui uma das suas raízes mais fundas.

9. A qualificação das condições de ensino e aprendizagem passa ainda por um olhar muito atento ao quotidiano dos docentes. Não é possível acompanhar adequadamente os alunos e cada aluno quando a cada professor está atribuído um número excessivo de turmas, disciplinas e estudantes. Quando o seu dia-a-dia se consome em reuniões e em tarefas burocráticas e administrativas. A actual equipa do Ministério da Educação não só ignorou olimpicamente esta realidade, como a agravou de uma forma inenarrável.

10. Uma política educativa consciente da importância da qualidade é uma política sensível às realidades, aos contextos e aos territórios. Impõe-se por isso, por um lado, a criação de mecanismos de caracterização do meio social em que cada escola se enquadra, de modo a tornar possível compreender resultados e agir sobre dificuldades. A elegibilidade de projectos de desenvolvimento educativo, semelhantes aos TEIP, deve ser claramente alargada, providenciando os recursos considerados necessários a cada situação. É neste quadro, de resto, que devem ser equacionadas as propostas relativas à constituição e reforço de equipas multidisciplinares (propostas no ponto 3) e o ensino multilingue (ponto 1).

11. Os processos de avaliação de escolas e docentes devem ser compreensivos, capazes de captar as múltiplas dimensões e portanto irredutíveis a lógicas de segmentação e quantificação como as que o ministério impôs (de parâmetro em parâmetro, de número em número, até ao erro final). A avaliação de desempenho docente deve saber combinar dimensões internas e externas (como proposto no ponto 2), ter como quadro de referência o contexto da escola e como princípio o diálogo profícuo entre avaliadores e avaliados.

12. A abertura da escola à comunidade não se decreta, nem se obtém com a incapacitação dos órgãos de gestão ou através da restrição da sua autonomia na definição das suas trajectórias de desenvolvimento (tal como seria absurdo propor representantes autárquicos ou de paróquias na direcção de um hospital ou um tribunal). Os parceiros locais devem participar num órgão consultivo da escola e não nos seus órgãos directivos e executivos. A colegialidade é um exercício e uma vivência pedagógica da democracia, de que a escola não pode nem deve prescindir.

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