Quanto mais
alargados forem os mecanismos para a prática e a fruição
artísticas, mais informada, mais crítica, mais
participativa, mais cosmopolita será a comunidade e mais justo
e democrático será o seu desenvolvimento. Aqui reside o
interesse público da criação artística e
se fundamenta a intervenção do Estado.
Contributo de Pedro Rodrigues, administrador da Escola da Noite — Grupo de Teatro de Coimbra
Iniciada com
décadas de atraso em relação a outros países
europeus, a actuação do Estado português neste
domínio tem sido envergonhada nos propósitos e limitada
nos recursos, assentando numa contradição que continua
por sanar: ao mesmo tempo que destina verbas para financiar a criação
artística, o próprio Estado alimenta práticas e
discursos que menorizam público e criadores.
liberdade,
igualdade e criatividade
Como qualquer
sector de actividade que implique meios humanos e materiais, a
criação artística será sempre
financeiramente dependente - do Estado ou do mercado. Cabe a uma
política de esquerda reconhecer que só o Estado pode
garantir a igualdade de todos no acesso à criação
artística, independentemente dos seus recursos económicos
ou da zona de residência, e que só o financiamento
público pode assegurar a sobrevivência dos sectores da
criação em relação aos quais o mercado
não responde de forma suficiente. Ao contrário do que
se afirma no programa do actual governo, só a intervenção
do Estado, contratualizada e transparente, garante a liberdade no
sector criativo - é ao Estado que devemos exigir o respeito
pela universalidade dos direitos individuais e colectivos e é
em relação ao Estado que, numa sociedade democrática,
as cidadãs e os cidadãos dispõem dos mais
eficazes mecanismos de fiscalização.
A meta simbólica
do 1% do Orçamento de Estado, prometida e desrespeitada por
sucessivos governos, mantém-se como referência mínima
a alcançar com urgência e constitui um sinal político
de enorme relevância que um programa de esquerda não
pode deixar de concretizar.
transversalidade
e irresponsabilidade
Pela natureza da
actividade artística e pelos resultados multi-facetados da sua
difusão, é frequentemente defendida a necessidade de
uma intervenção transversal por parte do Estado. As
ligações com outras áreas de governação
(a educação, o turismo, a economia) não podem no
entanto servir para disfarçar o sub-investimento na criação
artística, remetendo-a para uma "terra de ninguém"
onde todos são co-responsáveis mas ninguém se
responsabiliza. Uma política para a igualdade reforça o
papel específico do Ministério da Cultura na gestão
da intervenção pública no domínio
artístico e encara todas as colaborações com
outros sectores como formas de complementar, maximizar e rentabilizar
o investimento directo entretanto feito.
as redes
precisam de nós
De igual modo, o
trabalho em rede não deve ser um fim em si mesmo, num contexto
em que os pólos em que tais redes deveriam assentar (os nós
que podem sustentá-las e alimentá-las) estão
fragilizados e a tentar sobreviver. Sem que esses pólos tenham
um mínimo de estabilidade, as redes criadas por decreto
transformar-se-ão, perversamente, em mecanismos que acentuam
as desigualdades entre estruturas mais e menos consolidadas e entre
regiões do país com níveis de desenvolvimento
artístico muito diferenciados. Em matéria de
descentralização da criação artística
(elemento indispensável à descentralização
"cultural"), será necessário:
-
contratualizar
com estruturas de criação e criadores individuais
estrategicamente distribuidos pelo território
contratos-programa que lhes permitam desenvolver o seu trabalho em
condições temporais e financeiras razoáveis e
que tenham em conta as especificidades locais;
-
criar um programa
específico para o apoio à programação de
espaços culturais, tirando partido das infra-estruturas
entretanto criadas e rentabilizando o investimento feito na criação
artística;
-
alargar o sector
público da criação artística,
actualmente limitado a Lisboa e Porto, integrando-o numa lógica
de desenvolvimento das principais cidades médias do país.
para além
do dinheiro
Uma política
para a igualdade no domínio da criação artística
vai necessariamente além do reforço orçamental.
Reconhecido, de facto, o interesse colectivo desta actividade,
compete ao Estado e aos seus responsáveis combater por todos
os meios as representações simbólicas que têm
ajudado a criar entre a população, como os discursos da
subsídio-dependência ou do elitismo. Uma mudança
de paradigma (aqui sim) transversal a todas as áreas e escalas
de governação, com particular destaque para o papel da
educação, assumindo a formação de
públicos como um dever colectivo e não como uma
responsabilidade dos criadores.
Inclui-se nesta
mudança:
-
a universalização
do ensino das várias expressões artísticas
desde o ensino pré-escolar e ao longo de todos os níveis
de escolaridade;
-
a
disponibilização de meios de informação
e divulgação das iniciativas artísticas
financiadas pelo Estado nos órgãos públicos de
comunicação social.
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