Arte ŕ Parte
16-Mar-2009

Foto de Haags Uitburo no FlickrCultura. Será que agora, no léxico do Partido Socialista, Cultura se define finalmente como sinónimo de marginalidade? A Cultura parece-nos estar à margem da sociedade e quem ainda a vive, ou sobrevive, fá-lo em condições precárias e decadentes.

Contributo de Francisca Santos e Mariana Tengner Barros, enviado para igualdade@bloco.org

Os artistas portugueses estão exilados. Alguns fora, outros dentro. “O que não entretém, não convém.” Estagnamos. Tantos anos assim… Fugimos, exilados, procurando refúgios no estrangeiro onde muitos de nós se mantêm, por vezes sem nunca mais voltar. Os que voltam deparam-se com um país recheado de pessoas incrivelmente talentosas e com muito para dizer, mas que se encontram desencantadas, impossibilitadas, condicionadas, censuradas por um sistema governamental construído à base de promessas nunca cumpridas, um sistema hipócrita.

Somos duas bocas revoltadas, que, se por vezes não têm alimento, as enchem com palavreado que queremos que sirva para alguma coisa. Decidimos, desta feita, deixar aqui um comentário-alerta, um comentário-não-querendo-ser-pretensioso, um comentário de luta, um comentário de “mexam-se por favor”, um comentário de procura (onde andam vocês todos?), um comentário que não se quer somente um comentário, um comentário de “come-otário”, um comentário da não-cegueira, apesar da epidemia Blindness estar instalada.

Antes de ser dirigido ao sistema político, às instituições, aos partidos, às ONGs, é, acima de tudo, para todos nós, para olharmos para estes corpos com um olhar analítico e crítico, longe de uma auto-observação decadente, deprimida e com pena de si mesma. Queremos falar da cultura de uma arte, principalmente da Dança Contemporânea, que é o nosso mote de hoje e de sempre, enquanto novas criadoras e intérpretes que sabem que aí vêm periodos difíceis, ainda mais quando todos os pequenos artistas se encontram isolados e sem meios nem condições para actuarem. A situação é inaceitável. Contextualizando:

Foi nos finais dos anos 80, que uma série de artistas, tensionados pelo regime fascista e com a energia da revolução, juntaram forças, e que entre Nova-Iorque, a Nouvelle Danse francesa e belga, deram origem à Nova Dança em Portugal. Uma lufada de ar fresco, reinvindicativa e de “mãos-na-massa”, apareceu e perdurece há mais de 20 anos, e apesar de todos os esforços, a situação continua na mesma. Com amargura, olhamos hoje para um documento escrito há mais de 10 anos, intitulado “DEZ MAIS DEZ”, em parceria com o Fórum Dança (associação cultural que promove a formação profissional e artística, a investigação, a edição e a documentação no âmbito da Dança Contemporânea) e a RE.AL (estrutura ligada à Dança Contemporânea dirigida pelo coreógrafo João Fiadeiro), no qual se efectivizava uma nota importantíssima escrita por Ezequiel Santos, e que ainda hoje inadmissível e indisciplinadamente se vive. Transcrevendo:

“(…)Portugal é um país pré-moderno e provinciano. De outro modo, não se compreende que o Estado não tenha investido na dança à razão do que os seus agentes mereciam, devido ao seu crescimento artístico e aos reflexos da sua actividade. (...) os portugueses continuarão a fingir que são europeus, que não são um povo conservador e a ter problemas simbólicos com o seu corpo”.

Depois de tanto investimento a nível individual e colectivo, como é possível isto ainda ser uma verdade real? Os seus esforços terão sido em vão? Ou irão somente ficar na História? O que ganhamos nós com isso? Deverão e/ou poderão eles usar do seu poder para nos ajudarem?

Nós, enquanto artistas emergentes vemo-nos sozinhas neste emaranhado sem escapatória. Como é de todos sabido, o Estado não investe neste sector, a cotação orçamental destinada à Cultura é miserável, impedindo a promoção de uma dinâmica, de um circuito e de toda uma prática que possa existir, acabando-se por ficar numa espécie de masturbação conjunta e numa prática que, de facto, começa e acaba no mesmo sítio: seja este um estúdio, um quarto, uma sala, ou mesmo dentro de uma estrutura. A falta de visão e sensibilidade por parte do governo em relação à dança é incomensurável, a situação a recibos verdes para os artistas intermitentes é violatória dos direitos de qualquer artista:

Obrigam-nos a trabalhar a tarde e a más horas, em bares, cafés, tascas, mini-preços, restaurantes, que para além de nos retirar o precioso tempo para o que realmente interessa, é, sem outra adjectivação, abusada e porcamente mal paga. This is not a performance, já lança a dica certeira de Filipe Viegas, com este projecto que vem satirizar esta situação, deixando ao descoberto a verdadeira realidade. Uma realidade que ainda nos obriga a estar dependente de subsídios e bolsas quase-inexistentes, de burocracia desmedida que não corresponde aos seus benefícios. Não podemos também, deixar de apontar o facto de a maioria das Bolsas provirem de fundações privadas e que privilegiam a formação e investigação no estrangeiro, porque “lá” é que é bom… Sim, “lá” é de facto melhor, mas porquê? Porque não investe o Estado em proporcionar as condições mínimas (nem nos atrevemos a dizer perfeitas!) para que os artistas se possam desenvolver cá dentro, desenvolvendo assim o país!

No final de contas (e que contas!), temos obrigatoriamente de ser multifacetados, malabaristas, acrobatas, transdisciplinares de uma única acção, que é sempre complexa: sermos criadoras, programadoras, financiadoras de nós próprias, sermos o motor de tudo, enquanto existe tão pouco. Um motor, cujo “pão-nosso-de-cada-dia” é não ter combustível; um motor que é obrigado a parar (o sinal vermelho aparece a cada esquina com um afincado não!, um como?, quem é você?, conheço-a?, de onde vem?,o que é que já fez?, onde vai arranjar dinheiro para isso?); um motor que arrasta uma carcaça por vezes cansada, uma carcaça que se perde porque não há mapas. Praticamente não existem circuitos de apresentação de trabalhos, que de forma efectiva possam abarcar a maioria das necessidades dos projectos, nem suficientes espaços de acolhimento para a criação, experimentação e reflexão artística.

Caminha-se por estas ruas e espaços em degradação encontram-se aos molhos (podiam ser recuperados e propostos para esta “gente sem terra” mas mantêm-se no vazio); ou ainda os espaços que de tão “priviligiado valor” se recusam a abrir as portas (muito menos a das traseiras) aos jovens artistas, às efervescentes iniciativas (que sem dúvida não desaparecem nem com água, nem com paninhos quentes por favor) sendo somente percorridos pelos funcionários de limpeza e de segurança que diariamente purificam os espaços para a boa aparência, para as “individualidades” por lá se pavonearem, ou, em último caso, deixados ao abandono para as amigas moscas. Enfim. De facto, não existe uma política que promova o diálogo, entre o poder local, central, teatros, estabelecimentos de ensino, artistas individuais, bailarinos e coreógrafos, e se ele existe, é fechado, fechado nele próprio, fechado em espectáculos-fachada-entretenimento. Obviamente, não queremos apelar ao seu aborto. Estes existem, hão de existir e fazem parte de todos nós, mas esta nossa arte está à parte, também pelas suas características: uma arte do indizível, que não se contenta, que questiona, feita de pessoas que pretendem perceber o mundo, tensioná-lo, “mudar o centro de gravidade”, como bem o diz João Fiadeiro. Talvez seja para uma minoria, mas também só pedimos o indispensável, pois o resto fazemos nós.

Resume-se a situação nacional e o governo português a uma célebre frase, que já quase se tornou num provérbio contemporâneo nacional: “Falam, falam, falam, falam, mas eu não os vejo a fazer nada!”
Alguém tem que fazer, vamos!