O novo paradigma da Medicina – Medicina Integrativa
18-Mar-2009

João Paulo ToméSendo um dos elementos que tem procurado desde o início os caminhos para que uma nova forma de contribuir para uma SAÚDE na qual todos os cidadãos tenham acesso a Cuidados de Saúde de qualidade, independentemente das suas opções (Convencionais e/ou Não Convencionais), venho propor a inclusão da obrigatoriedade da Regulamentação da Lei nº 45/2003, à qual o PS, embora arvorando-se como seu autor, apesar da sua maioria absoluta, se tem recusado a fazer.

Contributo de João Paulo Tomé

O novo paradigma da Medicina - Medicina Integrativa

CAPÍTULO I

Reflexão analítica geral

Começarei o trabalho citando o Professor Doutor Luc Montagnier, Prémio Nobel da Medicina 2008, que me concedeu a honra de validar as minhas propostas de investigação sobre o HIV, assim como a minha visão sobre o novo paradigma da Medicina para o Século XXI:

... identificar as causas múltiplas cuja importância relativa pode variar de indivíduo para indivíduo, não é simples. Isso requer exames laboratoriais específicos, um conhecimento aprofundado da parte do médico do seu paciente e da sua história; um diálogo que exige tempo, numa época em que este falta. Também é necessário aceitar essa dialéctica subtil que faz com que uma causa se possa transformar numa consequência e vice-versa. Será também necessário aguardar por novos meios tecnológicos para a detecção dos sinais de um ou de vários agentes infecciosos que podem agir em consonância.

Mas a revolução está em marcha e nada nem ninguém a poderá parar, porque ela trará a melhor solução para o cidadão e para a sociedade: - uma medicina integrativa, personalizada e preditiva, é chamada a desenvolver-se, para substituir a medicina de crise.

(Les Combats de la Vie, pag. 15)



Agora, para iniciar o trabalho, reflictamos um pouco sobre as realidades sobre as quais se baseiam todos, ou quase todos, os chamados Sistemas de Saúde instituídos.

Na verdade, o que é que fazemos nas estruturas operacionais instituídas?

Em 99.9% dos casos, nos Hospitais e Centros de Saúde, procuramos tratar pessoas doentes e encontrar alívio para os que sofrem de uma qualquer patologia. Na realidade, etimologicamente, estamos a dedicar o nosso esforço, competências e saberes, à Doença (e não à Saúde).

Tratar a Saúde, fundamentalmente, deverá ser prevenir a Doença. Ora todo o sistema organizacional, quer social, quer educacional, quer dos próprios cuidados de Saúde, estão dirigidos para o tratamento da Doença e não para a sua prevenção. Assim sendo, há que mudar o Paradigma e os seus conceitos de base.

Sendo a Saúde Pública um Direito Social Fundamental e Constitucional-mente estabelecido, é absolutamente lógico que haverá que alterar os conceitos e prioridades para que a Sociedade (como um todo) assuma as suas responsabilidades na manutenção da Saúde e na prevenção da Doença.

Tal desiderato apenas poderá ser atingido se reorganizarmos as prioridades nas políticas de:

  1. Educação para a Saúde;

  2. Prevenção da Doença;

  3. Refundação das metodologias de Ensino em Saúde;

  4. Refundação das metodologias de tratamento da Doença;

  5. Adaptação dos Sistemas de Saúde Pública às realidades sociais.

Na sistematização do presente trabalho, iremos, mais à frente, inserir dois capítulos, sendo o CAPÍTULO II dedicado à Educação para a Saúde e à Prevenção da Doença, e o CAPÍTULO III dedicado à Refundação das metodologias do Ensino em Saúde, Refundação das metodologias de tratamento da Doença, e Adaptação dos Sistemas de Saúde Pública às realidades sociais.

Se, de alguma forma, conseguirmos vocacionar e inovar tudo isto, os gastos com os Sistemas Nacionais de Saúde poderão ser reduzidos muito significativamente e torná-los viáveis e sustentáveis.

É mais do que evidente que muito do "carreirismo" e das "benesses", que se tornaram autênticas "instituições internacionais", tenderão a desvanecer-se com a aplicação das medidas propostas. Mas muitos desses "carreirismos" e "benesses" são autênticas "aberrações", vis-à-vis a um Sistema que deverá estar vocacionado para servir a Sociedade e os Cidadãos de uma forma assertiva e global, com a sua própria responsabilização, quer individual, quer colectiva.

Por outro lado, evitar confusões escusadas, também não sou um adepto do famoso "bota-abaixismo" tão natural, direi mesmo quase genético, nos críticos nacionais, sobre as coisas nacionais.

Todo aquele que julga que algo está errado, enquanto não pensar no assunto e encontre uma qualquer solução (por mais absurda ou inexequível que seja), não deveria ter o direito a exprimir-se. Embora a crítica seja sempre construtiva, e, portanto, o cidadão deva ter todo o direito de dizer mal, só deveria exercer esse direito, quando refira uma qualquer hipótese de solução.

Regressando às reflexões iniciais, pensamos que a própria Natureza nos mostra os caminhos possíveis e exequíveis para solucionarmos esta grande preocupação sobre o que é Saúde e o que poderíamos fazer por a preservar, a partir de duas simples observações:

Se deitarmos um olhar "anatomofisiológico" ao organismo humano, qualquer um vê que não são as células (por exemplo) da mucosa do intestino que vão até ao coração buscar o oxigénio e os nutrientes de que necessitam para viverem saudavelmente, mas é o coração que lhes envia tudo isso através da circulação sanguínea.

Por outro lado, deverá ser responsabilidade dessas mesmas células a sua auto-aprendizagem, na criação de um meio local e regional saudavelmente defensivo contra as agressões externas, através de uma auto-regulação do pH e da concentração ambiente de metabolitos, com a indispensável ajuda e colaboração das células imunocompetentes com as quais contactam.


Esta duas observações, por mais simplistas que possam parecer, oferecem-nos as pistas para o que iremos escrever no CAPÍTULO II.

Complementamos estas observações com duas citações tão antigas quanto correctas:

"A medicina não é apenas uma ciência. Também é uma arte. Ela não consiste na preparação de pílulas e emplastros, lida com os próprios processos de vida que precisam ser compreendidos antes de poderem ser guiados."

Paracelsus

"O melhor médico é aquele que é capaz de diferenciar o possível do impossível."

Herophilus de Alexandria

As referidas citações vêm colocar o profissional de Saúde perante a evidência da necessidade do melhor conhecimento científico e da maior compreensão das chamadas Ciências da Vida e da Saúde, assim como de assumir com humildade os seus próprios limites de conhecimentos e de competências.

Por mais que estude e saiba, o profissional de Saúde não deixará jamais de ser apenas um mero Ser Humano cheio de limitações (antropológicas, sociais e individuais) que o colocam ao mesmo nível humano daqueles que procuram em si o alívio para os seus padecimentos.

Muito mais do que em qualquer ramo ou área do conhecimento, é na Saúde que a igualdade ou paridade entre "produtor" e "consumidor" mais se evidencia, pois o "produtor" é permanentemente um potencial "consumidor". Daí deriva a primeira competência do bom profissional de Saúde:

  • Ser capaz , durante o seu trabalho de "produtor", de se pôr na situação do "consumidor" que tem na sua frente. Só assim irá poder entender e compreender os processos de vida que conduziram o utente à sua presença.

A época em que o exame clínico do paciente era como que algo de misterioso, quase que fazendo do médico um "ser superior" para além da compreensão do vulgar Ser Humano que a ele recorria, já não tem qualquer razão de existir. Na época actual, em que a informática nos disponibiliza quase todo o saber com poucas restrições, quando o profissional de Saúde se "refugia" sob a capa do secretismo, arrisca-se a ser classificado de "arrogante", ou de "ignorante". E é-o!

Com esta avassaladora abertura do conhecimento ao alcance de todos, a "praxis diagnostica" tem de passar a ser, também, a informação adequada do paciente sobre o seu estado, sobre as eventuais razões que a ele o conduziram e, muito principalmente, a responsabilização do paciente pelas medidas (profiláticas e terapêuticas) que se deverão tomar a seguir.

Embora dependendo da gravidade e/ou da complexidade do caso, a responsabilidade da maior ou menor evolução dos resultados terapêuticos, passará, no mínimo de 50%, a ser da responsabilidade do paciente.

Utilizando um aforismo ou figura de retórica, poderemos afirmar que:

  1. O profissional de Saúde (médico, enfermeiro, farmacêutico, terapeuta), mais não é do que uma bóia que é fornecida a um náufrago, com todas as informações necessárias para o seu bom uso. Agora se ele a usa conforme as indicações que lhe foram fornecidas, ou não, é da responsabilidade do utente da referida bóia.

  2. Que também fique claro que nem todas as bóias são iguais, nem em qualidade nem por vezes as mais apropriadas ao caso. Essa é a responsabilidade do profissional que as fornece.

É no respeito destes princípios que se irá enquadrar a panóplia de reflexões contidas neste trabalho.

Numa abordagem globalizante, integrativa e objectiva, poderemos afirmar que o estado de Saúde do Ser Humano, é uma questão de equilíbrio e intercomplementaridade de diversos factores que, no seu conjunto, poderemos apelidar de Higiene Global ou Holística:

  1. Higiene pessoal;

  2. Higiene familiar;

  3. Higiene laboral;

  4. Higiene social;

  5. Higiene ambiental.



Qualquer desequilíbrio significativo num único destes cinco factores referidos, irá desencadear, inevitavelmente, "efeitos secundários" em todos os outros.

Nessa situação, a maior ou menor capacidade reactiva aos referidos "efeitos secundários" dependerá exclusivamente das capacidades inatas psico-neuro-endócrino-imuno-fisiológicas do indivíduo afectado.

Seja como for, perante todas estas evidências, SAÚDE acaba por ser o resultado do complexo cruzamento e equilíbrio de diversas variáveis, a maioria das quais não estão dependentes dos chamados Serviços de Saúde Pública.

De todas as áreas da Ciência Humana, a das Ciências da Saúde e da Vida, a Medicina é a mais sujeita a variações e incertezas. Perante essa realidade, há que valorizar o bom senso e permanecer atento, com a mente aberta.

Neste momento, permitam-nos enriquecer estas reflexões iniciais do Capítulo I, com a seguinte alegoria:

A mente, num processo evolutivo e de dinâmica permanente, deve ser como um pára-quedas:

- Só é verdadeiramente útil se estiver aberto;

- Se fechado, só irá acelerar a queda e, eventualmente, a morte de quem o usa.


Pode considerar-se que há uma crise da atenção à Saúde, a qual envolve múltiplos aspectos e dimensões: uma crise multifacetada, atravessada por factores, macro e micro-sociais, culturais, socio-económicos, políticos, institucionais, entre outros. É, portanto, uma crise cujas dimensões geradoras são altamente complexas e ligadas entre si, mas que conflui no sofrimento, nos dilemas, nos fracassos, no vivido quotidianamente por milhões de doentes e profissionais nos serviços de saúde públicos (TESSER, 1999).

No cenário actual, observam-se duas vertentes na saúde. De um lado, os avanços tecnológicos com novas descobertas no campo da genética; terapêuticas medicamentosas avançadas; e diagnósticos através de exames sofisticados onde a ênfase é dada à máquina e à investigação da doença. Do outro, o crescimento de práticas ditas complementares, alternativas ou tradicionais, as quais, na grande maioria, não requerem alta tecnologia, cuja terapêutica e o diagnóstico procuram compreender o doente.

Definir o que é medicina alternativa não é uma tarefa fácil, pois, tudo que não é utilizado pelo modelo de saúde dominante na realidade, o biomédico, é tido como alternativo, complementar ou tradicional. Em Portugal, as práticas de medicina tradicional ou alternativa surgem em algumas localidades incorporadas ao Sistema Nacional de Saúde, mas também, em espaços marginais a este. Apesar do seu crescimento, o acesso ainda é bastante restrito para muitas pessoas, embora uma pesquisa efectuada pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 2002 tenha revelado que 74% da população portuguesa se sirva (directa e/ou indirectamente), das terapêuticas não convencionais.

Está-se a lidar com técnicas de tratamento usadas por especialistas por vezes toleradas, mas não reconhecidas pela medicina oficial. Portanto, com técnicas e saberes que não são oferecidos à população em igualdade de condições como a medicina oficial ou como práticas alternativas, mas mediadas por relações de força (LOYOLA, 1991).

Nesta pesquisa, a categoria de medicina alternativa foi tida em conta e apoiada pela definição da ORGANIZAÇÃO MUNDIAL da SAÚDE -OMS (2002).

Com isto, tem-se verificado um aumento das pessoas que diligenciam algum tipo de tratamento através da Medicina Alternativa e Complementar, assim como também se tem constatado um aumento no interesse e na utilização das mesmas pelos profissionais de saúde.

Deste complexo cruzamento de forças, surgiu a necessidade de criar Legislação que introduzisse mecanismos apropriados ao controle e normalização destas práticas e que teve como resultado a aprovação de uma Lei nº 45/2003 que oficializou a Homeopatia, a Acupunctura, a Naturopatia, a Fitoterapia, a Osteopatia e a Quiropraxia.

Á imagem do que já foi adoptado nas maiores Faculdades de Medicina de Universidades como Harvard, John Hopkins, Yale, etc., procurou-se estabelecer um Ensino Superior de todas as técnicas terapêuticas e saberes específicos das terapêuticas não convencionais acima mencionadas e constantes da Lei nº 45/2003, dentro de uma perspectiva globalizante, enquadradas pelos saberes científicos biomédicos actualmente aceites, sob a denominação de Medicina Integrativa.

Assim, a opção por este tema surgiu concomitantemente pelo facto de o curso a instituir (Medicina Integrativa) ter como pedra angular a promoção da saúde e do bem-estar dos indivíduos, com a maior garantia de segurança para os utentes. Esta é, então, uma forma de conciliar estes dois métodos que apresentam objectivos comuns, uma vez que a Medicina convencional não deve descurar esta realidade que significativamente se torna mais presente na sociedade contemporânea.

Para abordar a temática em estudo, alude-se à Crise na Saúde e a Crise na Medicina no Final do Milénio, enfatizando o papel das Medicinas Complementares e Alternativas na actual cultura em Saúde Pública.

Segue-se uma abordagem ao paradigma das transformações na procura pela saúde, ou seja, a crise no paradigma científico e na racionalidade médica moderna, bem como o paradigma emergente e a racionalidade médica vitalista, cenário da Medicina Integrativa.

A formulação do problema deve conter simultaneamente aquilo que nós sabemos e aquilo que não sabemos mas que queremos vir a saber. Deste modo, a formulação do problema ou questão de partida deve conter duas partes distintas, mas complementares.

Na primeira parte, deve ser elaborado o postulado, que se remete aquilo que no ponto de vista do conhecimento científico é verdade. Trata-se do aspecto geral do problema que se quer estudar. Pode representar atitudes, comportamentos, crenças, populações, problemas clínicos particulares, observações, conceitos, etc., que provem de diversas fontes (FORTIN, 1999).


De acordo com a mesma autora, a segunda parte é constituída pela dúvida, ou seja, é aquilo que não sabemos e que queremos saber. Como tal, trata-se da interrogação que precede o domínio no enunciado da questão e precisa a direcção que será dada à investigação. Situa o problema no contexto dos conhecimentos actuais.

Tendo por base estes pressupostos, apresenta-se a questão de partida do presente trabalho:

Postulado: A prática da Medicina Integrativa são técnicas que visam a assistência à saúde do indivíduo, seja na prevenção, tratamento ou cura, considerando-o como mente/corpo/meio ambiente e não como um conjunto de partes isoladas.

Segundo Helman (1994), citado por FERREIRA (2002), na sociedade actual coexistem habitualmente diferentes formas de ajuda à doença e cada uma delas oferece à pessoa a sua forma particular de diagnóstico, explicação e tratamento das doenças. Dentro das diferentes formas de ajudar a pessoa a prevenir e a controlar a doença, encontram-se a Medicina Integrativa, sendo esta cada vez mais procurada pelas pessoas que sentem necessidade de controlar algo que poderá ser o responsável pelo seu mal-estar. Estas práticas são cada vez mais procuradas devido a eficácia que elas têm demonstrado particularmente nas doenças crónicas e/ou em fases terminais da doença, para aliviar o sofrimento, melhorar a qualidade de vida, ou proporcionar uma morte mais serena, quando a vida não pode ser mais sustentada.

O sucesso das terapêuticas não convencionais nos últimos quinze anos deriva, em grande parte, da maneira como os terapêutas estabelecem a relação com os seus doentes (LUZ, 1999).

Esta relação poderia servir como um parâmetro de discussão para a medicina institucional, na actualidade, enfatizando-se a importância do aspecto simbólico em qualquer sistema terapêutico.

Consubstanciados por estes princípios, formula-se a questão pivot, fio condutor deste trabalho:

- Será que os Profissionais de Saúde reconhecem a importância da utilização da Medicina Integrativa como instrumento complementar da prática da Medicina convencional?



A CRISE DA SAÚDE E A CRISE DA MEDICINA NO FINAL DO MILÉNIO

O termo "medicinas alternativas" foi originalmente enunciado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1962, definido no singular (medicina alternativa), uma prática tecnologicamente despojada de medicina, aliada a um conjunto de saberes médicos tradicionais. Foi proposta como alternativa à medicina contemporânea especializada e tecnocientífica, no intuito de resolver os problemas de saúde, de grandes grupos populacionais desprovidos de atenção médica, em grandes áreas do mundo.

Posteriormente, passou a designar práticas terapêuticas diversas da medicina científica, geralmente adversas a esta medicina. Actualmente, o termo reveste-se de grande polissemia, designando qualquer forma de cura que não seja propriamente biomédica convencional. Por este motivo, não se considera o termo "medicinas alternativas" um conceito, mas uma etiqueta institucional.

O crescimento destas "medicinas alternativas" tem-se verificado tanto em países conhecidos do chamado Primeiro Mundo, como nos países do Terceiro Mundo, entre os quais se situam os países da América Latina, da Ásia e especialmente da África a partir, basicamente, da segunda metade dos anos 70, alcançando o seu auge na década de 80.



1. A crise na Saúde



O aparecimento de novos paradigmas na medicina está ligado a diversos acontecimentos, situações e condicionamentos complexos, de natureza, ao mesmo tempo, socioeconómica, cultural e epidemiológica. Entre estes acontecimentos fundamentais, destaca-se um conjunto de eventos e situações que podem ser denominados de "crise da saúde", característica do final do século e do milénio (ALMEIDA, 1998).

A crise da saúde pode ser vista, em primeiro lugar, como fruto ou efeito do crescimento das desigualdades sociais no mundo, consideradas aqui as sociedades do capitalismo avançado (predominante no Primeiro Mundo), as do capitalismo dito dependente (predominante no Terceiro Mundo), as sociedades oriundas dos destroços do socialismo, e o conjunto de países subdesenvolvidos do Continente africano, às vezes denominados de Quarto Mundo.

Este todo forma um conjunto submetido às leis de uma economia capitalista chegada a um estádio de internacionalização e dominância completa sobre o planeta, processo que economistas e cientistas políticos têm chamado de "globalização" (ALMEIDA, 1998).

De acordo com o mesmo autor, essa crise torna-se particularmente aguda nas sociedades onde há desigualdade social profunda, como nos continentes latino-americano, asiático e africano, com a grande concentração de arrendamento actual, gerando problemas graves de natureza sanitária, tais como a desnutrição, a violência, as doenças infecto-contagiosas e crónico-degenerativas, além do ressurgimento de velhas doenças que se acreditava estarem em fase de extinção, tais como a tuberculose, a lepra, a sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, que se aliam a novas epidemias, como é o caso da do HIV.

Todas estas questões poderiam ser controladas, ou mesmo prevenidas, com políticas sociais adequadas, se os governos desses países estivessem comprometidos com a saúde da população, e não com a actual onda político- -ideológica neoliberal, que tem gerado políticas económicas e sociais que agravam o quadro sanitário descrito.

Esta questão, muito discutida pelos mesmos economistas e cientistas políticos que discutem a globalização como facto económico, motivará, indirectamente, a procura de outra racionalidade na saúde, pelas populações (ALMEIDA FILHO, 1996).

Além disto, devido em grande parte às condições socioeconómicas que originam a crise sanitária, desenvolve-se actualmente no mundo capitalista o que sociólogos franceses como Michel Joubert, que tratam das relações entre a saúde e a cidade, têm denominado de "pequena epidemiologia do mal-estar", ao analisarem uma síndrome colectiva que se poderia definir como biopsíquica, com grande repercussão na saúde física e mental da força de trabalho, caracterizando-se por dores difusas, depressão, ansiedade, pânico, problemas na coluna vertebral, entre outros, que atinge milhões de indivíduos das populações de quase todos os países nas grandes cidades, ocasionando uma situação permanente de sofrimento para os cidadãos e de perda de muitos milhões de euros anuais para as economias desses países, em função de dias de trabalho perdidos.

Este "mal-estar" colectivo pode ser visto como um fenómeno de natureza tanto sanitária como cultural, que tem as suas raízes não apenas nas condições de trabalho do capitalismo globalizado, mas na própria transformação recente da cultura que é o seu fruto (ALMEIDA FILHO, 1996).

Verifica-se, com esta transformação, a perda de valores humanos milenares nos planos da ética, da política, da convivência social e mesmo da sexualidade, em proveito da valorização do individualismo, do consumismo, da procura do poder sobre o outro, e do prazer imediato a qualquer preço, como fontes privilegiadas de consideração e status social.

A brusca mudança de valores nos campos mais importantes do agir e do viver humanos, sugerida ou amparada por meios poderosos de difusão cultural como a televisão, o rádio, a imprensa escrita em geral e, principalmente, a publicidade e a propaganda que atingem pesadamente as populações de quase todo o planeta, tem vindo a causar uma situação de incerteza e apreensão sobre o modo de se conduzir e de pensar e sentir em relação a temas básicos como a sexualidade, a família, a nação, o trabalho, o futuro como fruto de uma vida planeada, entre outros (ALMEIDA FILHO, 1996).

Além disso, a unificação mundial das fontes de informação e difusão cultural têm vindo a ocasionar uma quebra de padrões nas culturas nacionais, e mesmo regionais dos países, substituindo-se antigos padrões de identidade cultural por padrões homogéneos próprios da cultura de massas.

Paradoxalmente, esta homogeneização "pelo alto", isto é, a partir do central, proporcionou uma fragmentação "por baixo", isto é, a partir da esfera local, tendo havido o ressurgimento - ou pelo menos a recuperação ou a revalorização - de antigos padrões e formas particulares de expressão de cultura, entre os quais figuram aqueles relacionados à Saúde e à Medicina.

A vivência colectiva desta situação de mutação cultural tem gerado um quadro de inquietação e mal-estar social, com repercussões concretas na saúde dos cidadãos das diversas sociedades (CAPRA, 1998).



2. A Crise da Medicina



A crise da Medicina deva ser distinguida do grande quadro que já se referiu anteriormente, por outro lado, não deve ser dissociada do mesmo, pois terá de ser analisada em vários planos de grande significação, tanto em termos socioeconómicos, como culturais.

O plano institucional é considerado por muitos, como o principal, na medida em que se traduz nos programas de atenção médica, sobretudo aqueles destinados às populações de baixos rendimentos. Em seguida, o plano ético, ligado à prática médica, na medida em que se destaca a perda ou a deterioração actual da relação médico-doente, com a objectivação dos doentes e a mercantilização das relações entre o médico e o seu doente, visto actualmente mais como um consumidor potencial de bens médicos, do que como um sujeito doente a ser, se não curado, pelo menos aliviado no seu sofrimento, pelo cuidado médico (CAPRA, 1998).

Imediatamente a seguir, destaca-se o plano da eficácia institucional médica, no qual deve ser destacada a perda, pela medicina actual, do seu papel milenar terapêutico, isto é, da sua função de arte de curar em proveito da diagnose, com o avanço das ciências do campo biomédico, através da investigação cada vez mais sofisticada de patologias, sem igual consideração pelos sujeitos doentes e pela sua cura.

Em seguida, sublinha-se a grave questão da bioética, implicada na investigação biomédica, que se desenvolve, actualmente, em progressão quase exponencial no âmbito microanalítico, jamais alcançado pela ciência: o nível genético, mais uma vez sem uma cuidadosa consideração do sujeito humano, nele envolvido, directa ou indirectamente.

Também deve ser considerado o plano corporativo, ou seja, o da profissão médica, que implica não apenas a questão da ética profissional em termos das relações intracategorias (questão das especialidades médicas), como as relações intercategorias da área de atenção à saúde (relações médicos/terapêutas, ou médicos e outras profissões de Saúde, como os psicólogos, os enfermeiros e assistentes sociais, entre outros), que chegaram actualmente a um nível de grave competição, perceptível nos serviços públicos de saúde.

Aqui também deve ser destacada a questão das relações entre profissionais médicos e cidadãos, sobretudo no que concerne aos utentes dos serviços públicos, caracterizadas muitas vezes por conflito ou hostilidade (FREIRE, 1999).

Não podem ser esquecidos o plano pedagógico, da educação médica (médicos: como, para quê e para quem?), e o político-institucional, da formação de recursos humanos, para actuarem na área biomédica nos seus diversos níveis - técnico, administrativo e de planeamento. Aí, deve ser destacada a questão da perda progressiva da capacidade das escolas ou faculdades da área de atenção à saúde para formar profissionais aptos para resolver, ou mesmo equacionar, problemas de saúde/doença de grande parte da população, sobretudo nos países de grandes desigualdades sociais, os do Terceiro e Quarto mundos (FREIRE, 1999).





Deve ser ressaltado, entretanto, que o que aqui se designa de "crise da medicina" não significa, absolutamente, uma crise no seu modelo de produção de conhecimento ou uma estagnação nas suas investigações. Não se trata de uma crise do que Foucault designaria de saber médico. Muito pelo contrário, em termos de "ciência das doenças", a medicina encontra-se muito bem, revolucionando-se constantemente através da produção dos ramos disciplinares da biociência que mais lhe são próximos.

Até este momento, analisa-se a "crise" muito mais nos planos ético, político, pedagógico e social.

Outros planos poderiam também ser destacados para análise, como frequentemente o são, em planeamento de saúde: o plano económico, dos custos crescentes da tecnologia médica e os seus efeitos institucional e social; o plano da irracionalidade da organização da medicina, centrada num modelo de atenção médica hospitalar, em detrimento das necessidades de atenção primária da população, entre outros (FREIRE, 1999).

Salienta-se, entretanto, que sempre que se analisam os elementos da questão social da medicina na sociedade actual, estes aspectos são privilegiados na análise de gerentes e planificadores, além de políticos do sector da Saúde, sem que se levem em consideração os aspectos anteriormente mencionados. Neste caso, a "irracionalidade da medicina" resume-se a um problema puramente de gerência ou, no máximo, de políticas públicas adequadas que é necessário implementar, controlar e avaliar (FREIRE, 1999).



Finalmente, destaca-se o plano que se designa de Racionalidade Médica, na medida em que o próprio paradigma que rege a medicina contemporânea sofreu um afastamento do sujeito humano sofredor como uma totalidade viva nas suas investigações diagnósticas, bem como na sua prática de intervenção. Isto também acontece devido a este sujeito humano sofredor ter deixado de ser o centro do seu objecto (como investigação) e do seu objectivo (como prática terapêutica). Este duplo afastamento gerou uma dupla crise na saúde das populações e na medicina como instituição, detectada a partir da segunda metade do século XX, que parece ter-se agudizado nos últimos vinte anos (FREIRE, 1999).



3. A Medicina e a Cultura



Toma-se como marco histórico simbólico da dissociação entre saúde, medicina e cultura a conferência de Alma Ata, realizada na União Soviética, em 1978. Nela, o director geral da Organização Mundial da Saúde declarou a incapacidade da medicina tecnológica e especializada para resolver os problemas de saúde de dois terços da Humanidade, fazendo um apelo aos governos de todos os países para o desenvolvimento de formas simplificadas de atenção médica destinadas às populações carentes do mundo inteiro, com o correspondente esforço no campo da formação de recursos humanos, utilizando-se, para isso, os próprios modelos médicos ligados às medicinas tradicionais.



"Saúde para todos no ano 2000" foi o lema então lançado. Aparentemente, às vésperas do terceiro milénio, nunca se esteve tão longe de tal propósito, pois já são três quartos da população mundial que carecem de cuidados de saúde, seja no sentido mais amplo, de condições colectivas adequadas e salutares de existência, seja no sentido mais restrito, de pessoas atingidas individualmente nas suas funções orgânicas e sistemas psicobiológicos, gerando assim um quadro de crise sanitária internacional. Tendo-se em consideração o grande e continuado desenvolvimento da tecnologia e da ciência no campo da medicina, e a sua incapacidade para reverter tal quadro, a procura de outra racionalidade em saúde por parte de distintos grupos sociais que conformam clientelas de cuidados médicos, e mesmo por parte de profissionais terapeutas, torna-se uma explicação razoável para o sucesso de sistemas terapêuticos regidos por paradigmas distintos daqueles da medicina científica (FREIRE, 1999).

Além disso, por mais paradoxal que pareça à primeira vista, a própria ideologia hedonista de valorização do corpo, da individualidade, da beleza e da conservação da juventude, associada à fisicultura, o aparecimento e o desenvolvimento de novas representações de corpo, indivíduo, pessoa e sanidade, que tendem a opor-se às representações e concepções de temas classicamente ligados à cultura médica, tais como as de máquina ou autómato altamente organizado, no caso de corpo; de divisão dualista corpo/mente, no caso de indivíduo, e de separação homem/natureza, no caso de pessoa.

As novas representações sobre estes temas, apoiadas na divulgação, pelos media, de padrões "naturais" de consumo, de beleza e de higiene, tendem a valorizar um neonaturismo ecológico como fonte de saúde, e a procurar a superação da representação homem/máquina na cultura contemporânea (FREIRE, 1999).

Tais representações, por outro lado, encontram suporte, ainda que em termos de negação, num conjunto de factos recentes de natureza ambiental.

É necessário mencionar a deterioração progressiva do meio ambiente planetário na segunda metade do século, produzida pelo desenvolvimento industrial apoiado numa tecnologia invasiva e predatória da natureza, com os conhecidos efeitos da poluição atmosférica, pluvial e marítima, da erosão, do assoreamento, da desertificação e da depredação de sítios e nichos insubstituíveis da natureza, colocando-se em risco a diversidade biológica e a própria sobrevivência da Humanidade.

Uma grande inquietação social está associada a esta "perda da natureza", se assim se pode qualificar a preocupação do movimento ecológico surgido nos últimos vinte anos, e que não se limita a "endeusar" a questão do meio ambiente, mas também a questão da vida como um todo, incluindo-se aí a questão da saúde humana.

A recuperação das categorias de vida, saúde, higiene, entre outras, está ligada a esta "consciência ecológica" característica do fim do milénio, o que também leva à procura de outro paradigma em saúde, pelo menos nas grandes cidades, ou nas regiões mais urbanizadas do mundo actual. Neste contexto, a medicina tecnológica tende a ser representada como antinatural e antiecológica, e a procura de medicinas "naturais" ganha a simpatia de camadas importantes das populações urbanas (FREIRE, 1999).



4. As Medicinas Alternativas, e a Actual Cultura em Saúde



O surgimento de novos modelos de cura e saúde, a partir da segunda metade do século XX, sobretudo com o movimento social urbano denominado contracultura, desencadeado nos anos 60 e prolongado durante os anos 70 nos Estados Unidos da América e na Europa, incluiu a importação de modelos e sistemas terapêuticos distintos daqueles da nossa racionalidade médica, e mesmo opostos a ela, numa atitude de rejeição cultural ao modelo estabelecido, em função das razões já apontadas.

Além da importação de antigos sistemas médicos, como a medicina tradicional chinesa e a ayurvédica, a reabilitação das medicinas populares ou folk do país (como as xamânicas ou as ligadas às religiões afro-indígenas) foi um evento histórico que atingiu o mundo ocidental, principalmente durante a década de 80, principalmente nos grandes centros urbanos.

Tal evento pode ser evidenciado pelos seguintes indícios, entre outros:

o grande desenvolvimento, nos centros urbanos, de farmácias e lojas de produtos naturais tradicionais ou recentes; o reaparecimento, em feiras populares urbanas, do "ervanário" (vendedor de plantas medicinais) como agente de cura, e aparecimento, na imprensa escrita e televisiva, de reportagens frequentes sobre os efeitos curativos de terapias ou práticas terapêuticas não-convencionais, denotando o aumento da procura das mesmas por um número significativo de pessoas.





Esse evento assinala também o boom das medicinas tradicionais complexas na sociedade ocidental, que passaram a ser denominadas de terapêuticas não convencionais ou medicinas "alternativas", e começaram a disputar espaços não apenas junto à clientela liberal ou privada, mas também nos serviços de saúde, demandando uma legitimação institucional até então não reconhecida ou concebida, e obtendo paulatinamente espaços de inserção na rede pública. É necessário, entretanto, que se olhe agora um pouco mais de perto para estas "medicinas alternativas", dada a sua grande diversidade interna.

Podem distinguir-se três grupos de "medicinas alternativas", todos com procura significativa por parte da população, de acordo com os diferentes países, em função de seu estádio de maior ou menor desenvolvimento urbano-industrial, e da sua história cultural:

  1. a medicina tradicional (quer europeia quer asiática) que, com mais precisão, se deveria escrever no plural devido à sua variedade, embora tenha um mesmo paradigma básico;

  2. a medicina de origem afro-americana, também plural, embora mais homogénea do que a primeira;

  3. as medicinas alternativas derivadas de sistemas médicos altamente complexos, recentemente introduzidas na cultura urbana dos países ocidentais.



Em primeiro lugar, deve ser salientada a mais antiga e persistente, apesar de todas as agressões culturais sofridas, que é a medicina de origem indígena, xamânica ou não-xamânica, nativa dos países que sofreram a colonização luso-espanhola. Tal medicina tradicional, também identificada como aborígene, primitiva, natural, não-formal, ou simplesmente medicina indígena, é realmente a expressão viva das culturas locais em muitos recantos dos continentes americano e africano.

A doença é gerada pela desarmonia entre os elementos fundamentais da vida, e restaurar a saúde, através da intervenção de xamãs, ou brujos, ou outros agentes de cura, é restabelecer a harmonia entre estes termos nos sujeitos, sempre vistos como um todo sócio-espiritual inserido na natureza.

Onde sobrevivem concepções "tradicionais" sobre a vida, a enfermidade e a morte, e onde se conservam saberes e práticas médicas autóctones que reconhecem tipos de "males" não equiparáveis às doenças ocidentais, existe um pensamento diferente, que se convencionou denominar de "mágico-religioso" em Antropologia clássica. Sob a etiqueta genérica de formas mágico-religiosas, os actos terapêuticos gerados no interior dos sistemas médicos indígenas têm sido habitualmente reduzidos a um estereótipo de tipo xamânico, quando este é apenas uma das facetas da racionalidade médica indígena. Em muitas das cosmovisões indígenas, o adoecimento é apenas um aspecto de uma categoria mais ampla, onde também se inclui a morte, o azar, os acidentes, o feitiço, o mau-olhado e outras desgraças.

Certamente que a própria natureza oferece os meios para o restabelecimento ou cura, através do recurso terapêutico que a cultura ocidental denominou fitoterapia.

As ervas, os minerais e não raramente os animais de cada região, fornecem as bases terapêuticas deste sistema de cura, não exclusivamente operado por xamãs. Os "erveiros" ou "ervanários" são também agentes de cura bastante importantes no sistema, assim como farmacêuticos populares, trabalhando em farmácias de ervas e produtos naturais. As "benzedeiras" e as parteiras são outros tantos agentes de cura contemporâneos que utilizam as formas de intervenção terapêutica derivada da tradição.

Nalguns países da América do Sul, como na Colômbia, na Bolívia, no Equador e no Brasil, embora praticamente restrita ao neoxamanismo, a magia atribuída a alguns dos agentes de cura tradicional é impressionante; o seu poder exerce-se sobre a vida e a morte, sobre a sorte e a má sorte e, evidentemente, sobre as invejas e as maledicências dos "forasteiros". A procura da medicina tradicional pelas populações pobres ou marginalizadas permanece, nestas regiões, um facto incontestável, e, em países como o Equador, 60 a 70% da população fazem uso dos recursos de tal medicina.

Em seguida à medicina tradicional indígena, há uma medicina em parte também originalmente xamânica, mas marcadamente mais religiosa que a primeira, relacionada com a população de origem africana, introduzida nos países da América do Sul e América Central através da escravidão praticada no continente pelos colonizadores europeus, basicamente a partir do século XVII e desenvolvida durante os séculos XVIII e XIX com o tráfico de escravos vindos do continente africano.

Esta medicina tradicional, ou mais exactamente, este sistema de cura complexo, que se enraizou fortemente na cultura das grandes fazendas e na dos centros urbanos por influência da força de trabalho escrava, também tem uma base terapêutica fortemente ancorada na fitoterapia. Entretanto, embora empregue a natureza como recurso básico de intervenção de cura, é inegavelmente mais espiritualista na sua abordagem dos fenómenos de adoecimento individual e em grupo, e o seu agente de cura mais importante é normalmente um sacerdote (ou sacerdotisa), através da figura do pai de santo ou mãe de santo, que opera terapeuticamente, intermediando entidades espirituais, divindades de diversas hierarquias, geralmente em rituais em que a possessão e o exorcismo podem ter um papel importante na cura.

Pertencendo a uma cultura de resistência, originária das culturas das tribos africanas, foi transmitida de geração a geração de um modo socialmente muito eficiente, tradicional, através do ensino iniciático e da filiação dos iniciados e devotos leigos a "casas" e linhas de espiritualidade ligadas a diversas divindades de origem africana.

Em geral, esta medicina alternativa encarrega-se do tratamento de "doenças espirituais" ou de origem espiritual (mau-olhado, feitiço, etc.), ou então daquelas doenças para as quais a medicina ocidental não oferece ainda perspectiva de cura, ou cujo tratamento é considerado como excessivamente invasivo, como o cancro, o HIV e várias doenças crónicas. Cobre, portanto, uma série enorme de doenças orgânicas e não-orgânicas, empregando como meios terapêuticos, além dos "passes" espirituais, a fitoterapia e a prática de uma homeopatia popular de tradição secular. Além disso, exige certas disposições, comportamentos e atitudes dos doentes "em tratamento", como dietas especiais, formas de sentir e de pensar que facilitem a cura, além de dádivas de preces e alimentos, ou doações materiais às divindades, no sentido de propiciar o restabelecimento do doente.

Finalmente, há um grupo de novas terapias designadas como "alternativas", "paralelas" ou "complementares" à biomedicina, introduzidas nos últimos vinte anos na cultura urbana dos países industrializados.

Geralmente, tratam-se de terapias derivadas de sistemas médicos complexos tradicionais que têm a sua própria racionalidade, como a medicina tradicional chinesa, a medicina ayurvédica ou ainda a homeopatia. Estas "medicinas alternativas" têm tido actualmente um grande crescimento, em termos de consumo, na sociedade contemporânea. São também aquelas que têm mais oportunidade, pela sua "tradutibilidade terapêutica", em termos de medicina ocidental, de se legitimarem frente à ciência e às instituições de saúde. São elas que têm sido o objecto do projecto "Racionalidades Médicas".

Além de incluir as grandes medicinas tradicionais do Oriente, como a medicina tradicional chinesa e a ayurvédica, geralmente reinterpretadas e reapropriadas culturalmente de acordo com os padrões ocidentais, incluem também reinterpretações da homeopatia e da fitoterapia populares, vistas como formas mais "naturais" de tratar as doenças, sem o "perigo" da iatrogenia da medicina convencional.

Actualmente, este grupo de "medicinas alternativas" é cada vez mais procurado por toda a gente, tendo-se difundido das mais civilizadas e cultas para as menos educadas formalmente.

Os três grupos de medicinas alternativas descritos acima têm actuado em interacção, competição ou complementação no meio cultural actual, que apresenta forte tendência ao sincretismo terapêutico, tanto do lado do doente, como do lado do terapeuta. Tendem, também, a um certo sincretismo institucional nos serviços de saúde, ditando a medicina ocidental científica a "função terapêutica" das medicinas ditas alternativas. Sob esta óptica, os sistemas médicos complexos tradicionais, que têm a sua racionalidade específica, tendem a ser "decompostos" em alguns dos seus elementos diagnósticos ou, sobretudo, terapêuticos, e a serem utilizados pelos doentes de acordo com um certo "bom senso" classificatório das suas demandas de cuidados e de tratamento de doenças.

Neste caso, não se leva em consideração a racionalidade própria destes sistemas, cujo paradigma é teoricamente centrado na terapêutica, empiricamente baseado na observação sistemática de doentes únicos, e terapeuticamente orientado para a escuta dos doentes, no sentido de estabelecer o seu diagnóstico, em geral considerado um processo individual de adoecimento ligado a padrões específicos classificáveis de desarmonia.

A questão que se coloca, em termos socioantropológicos e mesmo filosóficos, face a essas "medicinas alternativas", é a seguinte:

em que poderiam estas medicinas, muitas vezes milenares, inovar, ou tornar-se, face à nossa em constante evolução tecnológica, um "novo modelo", ou trazer para a saúde das populações, neste início de século e milénio, um "novo paradigma"? Poderiam efectivamente contribuir para superar, seja na diagnose, seja na terapêutica, uma medicina em revolução científica permanente? Em caso afirmativo, como e onde?



5. As Medicinas Alternativas e o Novo Paradigma Médico



Um novo paradigma médico pode nascer justamente onde a racionalidade médica ocidental esqueceu que era mais que um saber científico, isto é, que é também uma arte de curar doentes, distanciando-se da sua dimensão terapêutica, na procura de investigar, classificar e explicar antigas e sobretudo as novas patologias, através de métodos diagnósticos crescentemente sofisticados.

Na arte de curar predomina a terapêutica sobre a diagnose. Deste ponto de vista, as medicinas tradicionais, com a sua racionalidade terapêutica específica, inovam, em termos de paradigma, quanto aos aspectos a seguir referidos:

O doente, visto como totalidade biopsíquica, bem como o seu cuidado, tendem a ser considerados não apenas o objecto, mas também o objectivo central de medicinas como a homeopatia, a fitoterapia, a naturopatia, a medicina tradicional chinesa e a ayurvédica. No momento actual da cultura contemporânea, a questão do cuidado tornou-se crucial para todos os indivíduos, seja o auto-cuidado, seja o heterocuidado, onde estão necessariamente incluídos os cuidados médicos.

A generalidade e o distanciamento abstracto com que são tratados os doentes da biomedicina ou medicina convencional, em função da centralidade da doença no paradigma da medicina científica, criaram uma barreira cultural para muitos indivíduos e grupos sociais, que demandam ser efectivamente tratados e não apenas diagnosticados. Não basta aos doentes, ou aos indivíduos em risco de adoecimento, saberem o nome da patologia que têm ou poderão vir a ter; precisam também de saber se e como serão efectivamente cuidados para se curarem do mal ou não o contraírem. Por outras palavras, a questão da cura voltou a ser importante na cultura, e a medicina ocidental ainda não parece ter-se dado conta da importância deste evento para seu futuro desenvolvimento nas sociedades. As medicinas alternativas têm vindo a ocupar o lugar vago deixado pela medicina convencional, e dispõem de muita experiência neste âmbito.

Num contexto de extrema sofisticação tecnológica quanto aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos (exames, intervenções cirúrgicas ou paracirúrgicas, entre outros), interpõem-se máquinas de grande precisão entre o paciente e o seu médico, estabelecendo-se uma "frieza" técnica na relação entre estes dois factores sociais. Entretanto, a relação terapeuta/doente é historicamente carregada de grande significação simbólica, inclusive quanto ao contacto físico dos dois actores, o que implica o toque do corpo do doente. No contexto de distanciamento actual, o doente tende a ser visto e a sentir-se como um mero objecto de intervenção tecnocientífica, muitas vezes uma cobaia, despojado não apenas do seu corpo e do seu psiquismo, mas também de símbolos e significados pessoais e sociais investidos no seu adoecimento.

As medicinas alternativas, sobressaindo-se nesse caso a homeopatiae a naturopatia, tendem a ver a relação médico/doente como um elemento importante da cura, um guia seguro de indicação de evolução do tratamento. O aspecto psicológico, além do simbólico, é aqui evidentemente importante, e coloca à medicina convencional uma questão crucial em face da eficácia médica e da resolução de questões de saúde dos utentes de serviços públicos e grande parte dessa eficácia e resolução resulta da satisfação que os doentes encontram no seu tratamento. Tal satisfação deriva, por sua vez, de uma relação socialmente complexa, em que estão presentes elementos simbólicos e subjectivos, estabelecida entre os dois termos. A satisfação não deriva, portanto, apenas de uma racionalidade tecnocientífica, que tende, aliás, a ignorar a dimensão humana envolvida na relação terapeuta/doente.



O sucesso das medicinas alternativas nos últimos quinze anos deriva, em grande parte, da maneira como essas medicinas estabelecem a relação com os seus doentes (LUZ, 1999).

Esta relação poderia servir como um parâmetro de discussão para a medicina institucional na actualidade, colocando-se em pauta a importância do aspecto simbólico em qualquer sistema terapêutico.

Sabe-se que há pelo menos 20 anos que as questões mais importantes de saúde das populações do mundo inteiro, marcadamente em países do Terceiro Mundo, já não são uma questão estritamente médica. Sabe-se, através de contribuições da medicina sanitária, que uma tecnologia relativamente simples, adquirida pela medicina há várias décadas, seria suficiente para enfrentar as doenças mais comuns nestes países - tanto as infecto-contagiosas, quanto as crónicas (LUZ, 1999).

Entretanto, as questões actuais de saúde mais amplas exigem, para enfrentá-las, não apenas políticas públicas infraestruturais ligadas ao saneamento e à educação, actualmente deixadas de lado pelos governos com a dominância mundial do neoliberalismo, como também os modelos médicos pouco dispendiosos, que possam assegurar práticas adequadas de promoção e recuperação da saúde.

Tais modelos não fazem apelo à grande tecnologia actual, tão refinada quanto cara e ligada às especialidades médicas; muito pelo contrário, supõem uma visão mais globalizante e integrada da saúde dos cidadãos, atendendo-os com o que se designa normalmente como modelo de atenção primária à saúde. Este actua de maneira mais simplificada tanto para a diagnose, dispensando a parafernália dos exames sofisticados, como para a terapêutica. Privilegia-se, como forma de intervenção prioritária, a adopção pelos utentes, de práticas alternativas de saúde, hábitos e estilos de vida. Hierarquizam-se acções, formas de intervenção, incentivando-se muitas vezes uma presença mais activa do cidadão doente face à sua doença, através de estratégias de socialização, como a formação de grupos de doentes com troca de experiência e tomada de decisões para iniciativas de práticas colectivas, reuniões e discussões com terapeutas e especialistas, entre outras medidas (LUZ, 1999).



6. A saúde e o mercado



Dois pontos de vista marcam as interpretações sobre as origens da medicina moderna.

O primeiro, representado pela corrente do inglês George Rosen, diz que a medicina moderna nasce, enquanto prática colectiva, nas instituições religiosas ou nos governos, e que, paulatinamente, a organização de clientelas privadas, com o advento do capitalismo, foi desmantelando a sua lógica e tornando-a uma acção individual voltada para um mercado de compra e venda de serviços.

Outro ponto de vista diz que a medicina nasceu a partir de uma relação privada e singular entre o médico e o doente, relação essa que se estabelecia numa esfera "normal" de compra e venda de serviços; mas uma série de pressões e exigências sociais acabaram por torná-la num bem público voltado para a colectividade (LUZ, 1999).

Na verdade, pode dizer-se que as duas visões são complementares. O carácter "social" da medicina pode ser observado desde a constituição dos Estados Absolutistas Europeus, quando se organiza uma política médica, quando se implementam medidas públicas de saneamento e são criados hospitais de atendimento universal, embora, na prática, voltados para indigentes e segmentos desfavorecidos da população (MARTINS, 2008).

Não só no Estado, mas também na sociedade civil, são encontradas evidências de que, desde as mais remotas origens, existem sistemas de atenção à saúde voltados para a colectividade. É o caso das instituições religiosas, que mantinham hospitais destinados ao atendimento geral, ou ainda das associações de socorros mútuos ou "mutualidades", que desde o tempo das corporações de ofício medievais se preocupavam em montar sistemas de auto financiamento dos cuidados de saúde para os seus filiados (MARTINS, 2008).

Mas, independentemente das formas colectivas de organização da atenção à saúde acima descritas, funda-se em paralelo uma prática médica voltada para aqueles que podem pagar.



Assim, surge o desenvolvimento de um "mercado privado de serviços de saúde", que tem como base de sustentação e qualificação crescente dos profissionais médicos a criação de uma demanda efectiva de serviços voltados para indivíduos ou famílias, baseada na ampliação das camadas médias da população e na exaltação da relação médico/doente, enquanto relação liberal, como a forma social e cientificamente mais eficaz de solução dos problemas de saúde (MARTINS, 2008).

O mais interessante desta história, consiste na alimentação mútua destas duas lógicas de organização dos sistemas de saúde desde a sua génese. Com efeito, o elo de ligação entre elas era o profissional de saúde que frequentava muitas vezes os serviços de atendimento geral ou colectivo, ocupando cargos como servidor do Estado desinteressado pelo vil metal, ao mesmo tempo que mantinha a sua clientela entre as famílias remediadas e abastadas das cidades como principal forma de remuneração.

Frequentava as corporações profissionais e científicas com os seus companheiros e mantinha vínculos com a universidade, o que lhe garantia o acesso às novas técnicas e procedimentos terapêuticos, bem como aos medicamentos e equipamentos mais modernos. O seu vínculo com o sector público aumentava o seu prestígio e realimentava a expansão do seu mercado individual, formando um incessante circuito "prestígio - dinheiro - prestígio".

Assim, diferentemente do que muitos médicos costumam pensar, ao lamuriarem-se da sua crescente condição de assalariado, a medicina enquanto profissão já nasceu marcada pela heteronomia, na medida em que sempre foi comum ao profissional de saúde trabalhar e manter vínculos simultâneos na esfera pública e na privada, mesmo que com posições ocupacionais distintas.

A mudança encontra-se no nascimento da empresa médica, fenómeno associado à chamada idade madura do capitalismo.

A empresa médica decorre do crescente grau de mercantilismo e de assalariado formal da economia; da redução do espaço do auto-consumo das famílias; da ampliação do espaço do capital monopolista no seio das sociedades industriais.

Logicamente que a empresa médica é mais marcante nas sociedades onde as formas colectivas de atenção pública à saúde não se desenvolveram no sentido universal, como é o caso das Health Maintenence Organizations (HMO) nos Estados Unidos. Mas de qualquer forma é nos contratos colectivos de "seguro-saúde" com as empresas e, em menor importância, com as famílias, que o mercado de serviços de saúde se expande.

O relacionamento básico da empresa médica com os médicos não é o do assalariamento clássico, mas sim o pagamento por unidade de serviço, diagnóstico ou procedimento. Com isto, a medicina moderna ampliou o próprio sentido da heteronomia do trabalho médico, ao criar vínculos que passam desde o assalariamento clássico no sector público até ao trabalho liberal no consultório, passando por uma relação de compra de actos médicos pela empresa médica.

Sob a óptica da demanda, a questão do mercado de serviços de saúde passa, obviamente, pela segmentação de clientes, especialmente nas situações onde os serviços públicos são caracterizados pela má qualidade.



Nestes casos, a diversidade de acesso aos serviços privados crescentemente mais qualificados por parte dos que podem pagar, representa graus diferenciados de acesso à melhor qualidade de vida, ou ainda, patamares estratificados de cidadania.

A modernidade trouxe outra consequência importante no plano da mercantilização: a chamada industrialização da saúde.

Até o século XIX, a divisão do trabalho médico não tinha sido suficiente para separar totalmente a confecção de remédios e equipamentos médicos da clínica. Neste sentido, o processo de trabalho médico determinava, em grande medida, a natureza dos equipamentos utilizados.

O desenvolvimento de produtos farmacêuticos e equipamentos médicos em escala industrial trouxe, não só uma autonomia destes sectores frente ao trabalho médico, através do acesso ao mercado pelo marketing voltado para o auto-consumo, mas também colocou o próprio processo de trabalho médico subordinado às inovações no campo da indústria de equipamentos. Com isto, o mercado de serviços de saúde tornou-se adicionalmente um segmento do mercado destes produtos industriais.



7. A Saúde e o poder



O poder é entendido como o espaço das instituições, do Estado e das formas colectivas de pressão e representação social. A instância dinâmica do poder é a política. A Saúde só começou a ser objecto de política a partir do Renascimento, seja através do Estado, seja através das instituições caritativas, religiosas, entre outras (ALMEIDA, 1998).

Podem ser reconhecidas três fases da evolução da saúde enquanto política na modernidade.

A primeira fase - assistencialista -, caracterizou a política de saúde até meados do século XIX. A sua tónica era basicamente a de voltar a atenção à saúde para as populações mais empobrecidas e carenciadas. Desenvolveu-se institucionalmente em organizações leigas ou religiosas que se destinavam a fins múltiplos, tais como distribuição de alimentos, educação e protecção a crianças carentes, entre outras. São exemplos destas instituições aquelas que funcionavam sob a égide das "poor laws" ou ainda as "work-houses" na Inglaterra. Nas palavras de Foucault, na figura do pobre necessitado que merece hospitalização, a doença era apenas um dos elementos num conjunto que compreendia a enfermidade, a idade, a impossibilidade de encontrar trabalho, a ausência de cuidados (ALMEIDA, 1998).

De acordo com o mesmo autor, embora o "assistencialismo" em saúde tenha nascido de forma integrada a outras políticas sociais, tendo nas instituições da sociedade civil a sua origem, pode-se dizer que o Estado sempre foi um grande provedor de serviços assistenciais de saúde, como foi o caso das medidas relacionadas com a distribuição de medicamentos nos reinados de Luís XIV a Luís XVI (França), as políticas de saúde e vigilância englobadas no conceito de polícia médica (Alemanha) e as próprias "poor laws" (Inglaterra).

O final do século XVIII marca o surgimento de uma consciência em torno do assistencialismo. A decorrência das mudanças na esfera económica e social que caracterizam o capitalismo industrial e a possibilidade de utilização generalizada da força de trabalho no processo produtivo, independentemente da sua qualificação, a nova consciência atribuía ao assistencialismo, o ócio da população e a despesa pública improdutiva, fixava a necessidade de eliminá-lo com vista à construção de uma sociedade mais laboriosa e rica.

A eliminação das "poor-laws" inglesas em 1848 pelo Parlamento é a expressão máxima desta consciência (ALMEIDA, 1998).

As novas aspirações do poder - o Estado e as classes sociais hegemónicas - no campo da saúde, deslocam-se do universo da pobreza sem assistência para o universo do trabalho, erigindo-se uma nova modalidade de política de saúde.

A segunda fase - previdencialista - inicia-se com a formação de organizações mutualistas no seio de profissionais artesãos, tendo em vista cobrir, sob a forma de seguro, aspectos ligados à saúde e à previdência para grupos de trabalhadores que se organizavam e auto-financiavam, mediante cotização, estes programas. Este modelo foi repetido nas empresas (com participação de trabalhadores e patrões no financiamento) e posteriormente generalizado para qualquer trabalhador formal (como na Alemanha recém unificada por Bismark), com a participação adicional do Estado no financiamento (ALMEIDA FILHO, 1996).

O previdencialismo estende-se da segunda metade do século XIX até finais da primeira metade do século XX como forma hegemónica de política de saúde. O seu advento não eliminou a política assistencialista, embora a tenha limitado a determinados segmentos e clientelas da população (ALMEIDA FILHO, 1996).





O previdencialismo, como forma de política social e de saúde, foi um dos principais elementos que marcaram o fortalecimento de uma sociedade do trabalho. Nesta perspectiva, apenas os trabalhadores e as suas famílias eram dignos de receber uma atenção médica decente e diferenciada daquela recebida por pobres, vagabundos e indigentes (ALMEIDA FILHO, 1996).

É verdade que o Ocidente, especialmente os países europeus, vivenciou uma generalização do assalariamento após o advento do capitalismo monopolista. Com isto, estendeu-se o acesso de quase toda a população destes países às formas previdencialistas de atenção à saúde. O advento das duas guerras mundiais abalou a consciência de que a saúde seria somente um direito dos trabalhadores. Em circunstâncias marcadas pela calamidade, como a guerra, não haveria distinção entre aqueles que deveriam ser atendidos pelos sistemas de saúde existentes.

Consciente desse problema, o Governo Britânico, a 10 de Junho de 1941 pediu a Sir William Beveridge que se encarregasse, respeitando a interpelação de planos, de um exame dos projectos nacionais, já existentes, de previdência social e serviços afins, inclusive a remuneração dos trabalhadores, e apresentasse soluções. Após 18 meses de trabalho intenso, a 20 de Novembro de 1942, Sir William Beveridge apresentou o seu relatório.

Com efeito, o advento do Plano Beveridge marcou uma nova era na atenção à saúde: - a fase universalista.

Nesta nova concepção, a Saúde deixa de ser um atributo dos trabalhadores para ser direito do cidadão, independentemente da sua inserção no mercado de trabalho e da sua condição social. A gratuidade na prestação dos serviços, a universalidade de cobertura e a integralidade do acesso aos serviços, bem como a montagem de um sistema de financiamento assente em impostos universais e não em contribuições sociais, passa a ser a tónica dessa nova estrutura da política de saúde na Europa Ocidental.

Deve-se, no entanto, levar em consideração a dificuldade de chegar ao universalismo na atenção à saúde em todas as sociedades contemporâneas. As condições que levaram as sociedades europeias a este tipo de política de saúde foram muito específicas e podem ser sintetizadas em quatro pontos:

a) - Generalização do assalariamento formal. Mais de 90% da classe trabalhadora no momento da passagem do previdencialismo ao universalismo era composta por assalariados formais nos países europeus. Isto minimizou o esforço financeiro em custear uma política de saúde universal a partir do Estado, com uma incorporação de contribuições sociais e tributação ordinária;

b) - Elevação da consciência política das massas e estabelecimento de fortes pressões sociais por melhores condições de vida;

c) - Elevação brutal da produtividade e forte crescimento económico nos anos subsequentes, propiciando o surgimento de ganhos ainda maiores na qualidade de vida ao longo dos chamados anos dourados do welfare state;

d) - Existência de um sector privado supletivo de proporções razoáveis, voltado para os segmentos da população que pudessem pagar por uma atenção diferenciada ou por cuidados mais sofisticados e individualizados.







Tais condições estavam ausentes nos países subdesenvolvidos e, portanto, a fase universalista da política de Saúde, em que pese a sua importância, é um fenómeno bastante restrito em termos mundiais.

Convém salientar ainda algumas questões de natureza geral sobre as fases das políticas de saúde.

A primeira delas é a de que a hegemonia do universalismo não eliminou a existência das outras formas - assistencialista e previdencialista - no contexto mundial. Mesmo nos países onde o universalismo é hegemónico, a política e a filosofia previdencialista sobrevive nas empresas de maior porte e complexidade, onde é possível encontrar planos de saúde especiais custeados por empregados e pela própria empresa e voltados para o mercado privado de serviços de saúde.

O que se observa na prática, é que a lógica previdencialista desaparece no público, mas ressurge no privado, trazendo efeitos líquidos no aumento da estratificação social da atenção médica. Na medida em que são criadas formas cada vez mais sofisticadas de diagnóstico e terapia disponíveis apenas no sector privado, o "universal" garantido pelo público transforma-se simplesmente num "piso mínimo" de cidadania social.

As crises económica e fiscal dos anos setenta e oitenta e os seus impactos no Estado e nas políticas sociais, trouxeram perspectivas de redução deste piso mínimo, mesmo nos países europeus. As estratégias de flexibilização, reduziram, em muitos casos, o porte dos programas sociais dos países centrais. Com isso, o sector privado aumentou o seu espaço mediante o crescimento de uma atenção diferenciada e tecnologicamente mais moderna.

Na medida em que aumenta o espaço entre a atenção à Saúde mais moderna do sector privado, voltada para aqueles que podem pagar, e o "patamar mínimo" do sector público, reedita-se o assistencialismo; não aquele voltado para os desfavorecidos e miseráveis, mas uma forma de "assistencialismo" baseada numa atenção à saúde de menor qualidade voltada para os segmentos sociais com menos recursos. Este é o caso dos EUA, por exemplo, onde programas como o "medicare" e o "medicaid" se destinam a segmentos desprotegidos da população, mas a atenção médica da maioria consiste em planos de seguro privados - individuais ou pagos parcialmente pelos seus empregadores - oferecidos e operacionalizados pelas Health Maintenance Organizations.

Uma segunda questão diz respeito ao facto de que em países em desenvolvimento, como no Brasil, se vive uma situação ainda mais díspar. Um discurso universalista: o da reforma sanitária; uma prática previdencialista para o sector formal do mercado de trabalho: a "real politique" do INAMPS e do SUS e um segmento - de mais de um terço da população do país - composto por pessoas pobres e totalmente descobertas de qualquer mecanismo de segurança social; população-alvo das políticas de corte assistencialista.

Uma terceira questão remete ao retorno de uma ideologia neoliberal, crítica ao Estado e aos seus mecanismos de protecção social. Tal ideologia só aceita a política de Saúde assistencialista voltada aos que não podem pagar, e mesmo assim com restrições. Para os que podem pagar, caberia o mercado.





Isto explica o programa de privatização dos governos conservadores europeus na passagem dos anos setenta para os oitenta. Explica também o reflorescimento da medicina de empresa, organizada sob novas bases técnicas e administrativas no seio dos países desenvolvidos.

O desenvolvimento de uma política de Saúde universalista, como parte do Welfare State, bem como a sua recente crise, marcam o auge e o esgotamento da utopia de uma sociedade de trabalho. Mas as respostas conservadoras a esta crise nem sequer chegam a vislumbrar as saídas possíveis. Não é destruindo o Estado ou adequando-o à antiga dimensão liberal que se resolve uma crise que se esgota no trabalho enquanto motor dos ideais de desenvolvimento e crescimento.

O projecto do Estado social voltado para si, dirigido não apenas à moderação da economia capitalista mas também à domesticação do Estado, perde, porém, o trabalho como seu ponto central de referência. Isto é, já não se trata de assegurar o emprego por tempo integral à condição de norma. As sociedades modernas dispõem de três recursos que podem satisfazer as suas necessidades no exercício do governo: o dinheiro, o poder e a solidariedade. As esferas de influência destes recursos teriam de ser postas num novo equilíbrio. O poder de integração social da solidariedade deveria ser capaz de resistir às forças dos outros dois recursos: dinheiro e poder administrativo.

As formas de representação do chamado "interesse colectivo" avançaram muito ao longo dos anos. Os sindicatos e os partidos políticos - duas grandes forças propulsoras dos ideais de uma "sociedade de trabalho" - foram os principais pilares das conquistas obtidas no campo dos direitos à Saúde; do previdencialismo ao universalismo. Mas nos anos recentes, a questão da Saúde não tem sido mais uma bandeira unitária destas duas instituições tradicionais de representação.

O interesse colectivo na questão da Saúde organiza-se hoje de forma fragmentária em distintas instâncias neo-corporativas, como movimentos ecológicos, movimentos de bairro, movimentos pacifistas, movimentos pró-saúde alternativa, movimentos eclesiais de base, movimentos de defesa do consumidor e da qualidade de vida, entre outras.

Tais movimentos assimilam, cada um a seu modo, a questão da Saúde como parte da sua visão de mundo.

Ao mesmo tempo, as corporações tradicionais de profissionais de saúde, Ordens, Sindicatos, donos de hospital e funcionários públicos ligados ao sector, continuam a desencadear formas de fazer representar os seus interesses.

Os desafios postos pela crise da modernidade quanto à questão do poder em Saúde passam, obviamente, por um equilíbrio democrático entre esta pluralidade de interesses. Tal equilíbrio, por sua vez, torna imprescindível a compreensão de que o público nem sempre é social e de que o privado e o interesse colectivo podem ser harmónicos.



8. A Saúde e a Ciência



Não há como separar a questão científica e tecnológica em Saúde, da representação social do processo saúde-doença, o qual passa por diversas formas no curso da história.



A ciência e a técnica estão presentes nas formas pelas quais a doença é percebida, medicamente investigada, isolada ou distribuída segundo os meios de cura disponíveis na sociedade.

No entanto, prevenir e curar, sempre foram duas lógicas distintas de abordagem da questão da saúde. Cada uma destas lógicas detém formas particulares de incorporação da ciência e do progresso técnico.

Comecemos pela instituição basilar destinada à cura na sociedade moderna: o hospital. Esta instituição, até antes do século XVIII, era um mero depositário de doentes pobres cujas perspectivas de cura não existiam. Os doentes recebiam apenas roupas e comida, mas nunca visitas médicas acompanhadas de observação. O hospital era não uma instituição de cura, mas um corredor entre a vida e a morte e o pessoal que trabalhava nos hospitais era geralmente composto por missionários e religiosos, cujo trabalho principal era preparar espiritualmente o doente para o "vida eterna". De acordo com FOUCAULT (1980), o hospital como instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova, que data do final do século XVIII.

A consciência de que o hospital pode e deve ser um instrumento destinado a curar, aparece claramente em torno de 1780 e é assinalada por uma nova prática: a visita e a observação sistemática dos hospitais.

A utilização do hospital como espaço para a cura ocorre em simultâneo à introdução de uma organização disciplinar nesta instituição, conjuntamente com a instauração de um "poder médico" no seu interior. A disciplina e a hierarquia "militar" no hospital permitiram aumentar o controlo, introduzir a vigilância dos doentes, bem como um registo contínuo de seu estado de saúde.

A introdução da disciplina permitiu transformar o hospital num meio para a investigação científica. É nele que começam a ser conhecidos os efeitos e consequências de determinadas terapias sobre algumas doenças.

A medicalização do hospital propiciou a análise aplicada ao estudo de fenómenos fisiológicos, em retorno aos escritos hipocráticos enquanto prova do interesse pelo estudo da clínica, a união da medicina com a cirurgia, a reorganização das escolas clínicas e a introdução dos estudos de anatomia patológica. É nos hospitais que os cadáveres vão ser dissecados, depois de um longo período de obscurantismo religioso que impedia o desenvolvimento da ciência.

O método científico utilizado em medicina, baseava-se na observação, seguindo a orientação hipocrática da medicina antiga. Da observação nasce a analogia. Era necessário realizar um conjunto quase interminável de observações e comparações até que fossem identificados os sintomas. Os sintomas eram hierarquizados e classificados segundo critérios determinados.

Assim, observação, analogia, identificação e classificação foram "os quatro pontos cardeais" da construção do conhecimento em medicina clínica. Esta metodologia permitiu, com o tempo, a utilização de equipamentos para a obtenção de exames. O exame (através de equipamentos de imagem, som, análise clínica de laboratório de partes e excrementos produzidos pelo corpo) permitiu estender a observação a pontos onde ela era inacessível a olho nu.





A medicina de cura também teve o seu desenvolvimento científico e tecnológico associado ao esforço individual de médicos e boticários empenhados em descobrir novos equipamentos, terapias e remédios, mas foi no hospital que a ciência médica encontrou o seu esboço de reprodução e o seu laboratório de testes.

Quanto à prevenção, os avanços iniciais ocorreram no campo da higiene. As medidas de saneamento dos portos, para efeitos de reduzir os riscos associados ao comércio internacional e a criação de infra-estruturas de água e esgoto nas cidades, conjuntamente com vigilância dos hábitos de higiene pelos governos, tiveram fortes efeitos na redução da mortalidade nas cidades.

Posteriormente, as descobertas no campo da imunização, associadas a Pasteur e às campanhas de vacinação e erradicação das grandes endemias, trouxeram êxitos ainda maiores. Pode-se dizer que na passagem do século XIX para o século XX, a medicina preventiva contribuiu muito mais do que a medicina curativa no prolongamento da vida média da humanidade.

Mesmo assim, a prevenção e a saúde pública sempre foram considerados os "ramos" pobres da medicina e as inovações neste campo, apesar de associadas aos estudos de imunologia e biologia, tiveram um ritmo mais lento do que o observado na medicina curativa e na produção de fármacos, equipamentos e medicamentos. Isto porque a circulação de recursos monetários em Saúde sempre esteve associada à medicina curativa e aos hospitais, às empresas médicas e indústrias e equipamentos médicos que têm trabalhado dinamicamente as suas inovações tecnológicas movidas pelo lucro.



Poucas são as pessoas que se dispõem a pagar por "prevenção" em Saúde.

Foi preciso que o Estado tomasse conta da questão e tornasse a vacinação obrigatória, para que a população ganhasse o hábito de se prevenir contra doenças evitáveis por imunização. Em virtude disto, são poucas as empresas que se têm dedicado à medicina preventiva.

A criação de conhecimento e a difusão científica e tecnológica em medicina preventiva tem sido, basicamente, papel do Estado e das Universidades.

Destacam-se ainda os avanços ocorridos na psiquiatria e na psicanálise.

Antes do século XVIII, a loucura não era encarada como um mal sistematicamente passível de internamento. Excluindo-se os casos onde o comportamento agressivo era frequente, os loucos conviviam com as suas famílias sem maiores problemas.

A terapêutica utilizada para combater a loucura consistia em criar elementos de realidade na vida dos loucos, o que passava por colocá-los em contacto com a natureza onde, na perspectiva da época, "a verdade imutável" estaria presente e, ao mesmo tempo, distante da vida artificial das cidades. Passeios, retiros, viagens em locais não urbanizados e aprazíveis eram sempre vistos com bons olhos pelos terapeutas da época. Esta forma de encarar a terapia da loucura influenciou a própria concepção arquitectónica dos hospícios, sendo comum terem janelas voltadas ou para campos e paisagens ou para pátios internos cheios de vegetação.

A prática sistemática de internamento dos loucos inicia-se no século XIX, quando começam a ser exigidos padrões socialmente mais rígidos de comportamento pelas normas sociais. Este endurecimento das normas de conduta coincide com a afluência às sociedades urbano-industriais, onde o espaço colectivo se agiganta frente ao espaço doméstico, em função da disciplina imposta pelas instituições de trabalho e pela convivência social determinada por regras e normas bem definidas pelo poder público.

O hospital psiquiátrico, que surge no século XIX, procura aplicar os mesmos métodos de construção do conhecimento e de cura utilizados pelos hospitais voltados para outros males. Todo um esforço é realizado na construção de quadros clínicos da loucura e na classificação dos distúrbios mentais. Mas, diferentemente das demais enfermidades, as doenças mentais não entram em processo de tratamento com a aceitação passiva dos seus portadores, tal como acontece com as demais doenças.

No hospital de clínica geral não há, aparentemente, confronto. Médicos, funcionários e pacientes parecem ter o objectivo comum de cura. Nos hospícios, a situação é bem distinta. Entre o médico e o paciente há, antes de tudo, uma estratégia de submissão do segundo ao primeiro, dado que nem sempre o paciente aceita a sua cura. Um conflito de poder estabelece-se e a dominação, quando alcançada, quase nunca se dá pelo consenso. Assim, o hospital psiquiátrico transforma-se também em "locus" de conflito e confronto, de vencedores e vencidos.

Em função da sua natureza, a terapêutica da loucura muitas vezes vai além do permitido pela dignidade humana. Dado que a denúncia de um louco não tem crédito no sistema de valores sociais, tudo é permitido de ser feito. Todos estes problemas fazem com que a psiquiatria e os hospícios tenham sido, desde cedo, instituições onde precocemente nascem movimentos críticos e alternativos.

A crítica feita pela anti-psiquiatria passa pela hipótese de que as instituições asilares e os métodos psiquiátricos provocam um acréscimo do quadro clínico da loucura. Passam, também, pelo facto de que, se o poder médico nas instituições tradicionais de saúde já é tido como excessivo, é nos hospitais psiquiátricos que se verifica o verdadeiro abuso do poder médico.

Com base nestas críticas surgem, desde o final do século XIX, algumas propostas de "despsiquiatrização", as quais passam pela supressão do poder médico, pelo controle de doentes mentais através de psicocirurgia ou da psiquiatria farmacológica ou ainda pelo retorno do paciente ao seio familiar.

Embora muitas destas propostas sejam contraditórias, pode-se dizer que o tratamento da loucura em hospitais psiquiátricos é, hoje em dia, um dos campos das ciências da saúde onde o conhecimento e a prática se encontram menos unitários ou ainda mais despedaçados.

As descobertas de Freud, com a psicanálise, trouxeram outros efeitos no campo da "despsiquiatrização". A psicanálise mostrou-se eficaz no tratamento não asilar de muitos distúrbios psíquicos, mas a sua principal contribuição foi efectivamente colocar ao acesso das pessoas as razões dos seus traumas e tensões do quotidiano.

Outro grande mérito da psicanálise foi o de proporcionar a possibilidade de "prevenção" de doenças mentais colocando as pessoas comuns, de certa forma, capacitadas a procurar um auxílio aceitável pela sociedade - o do analista - quando detectam angústias ou mudanças de comportamento.



Boa parte da leitura psicanalítica sobre as doenças mentais levava em conta que, apesar da possibilidade de existência de pré-disposições a determinadas doenças mentais (identificadas pela ascendência familiar), grande parte destas são adquiridas pela violência do quotidiano.

No entanto, estudos mais recentes no campo da genética têm identificado em certos cromossomas a predisposição a determinados tipos de doenças mentais.

A relação entre tecnologia e processo de trabalho em Saúde, tem-se dado de forma distinta do que vem ocorrendo em outros ramos de actividade. O progresso técnico foi entendido como meio de poupar força de trabalho. Em Saúde, no entanto, podemos identificar duas formas de actuação do progresso técnico:

a) nos meios de diagnóstico e terapia;

b) na cirurgia e na relação ambulatorial de atendimento médico



No primeiro caso, observa-se que o progresso técnico tem actuado no sentido convencional: o de economizar força de trabalho. A automação dos laboratórios de análises clínicas, através da criação de processos que permitem leitura, classificação e análise das amostras de sangue por computador, reduziu muito o emprego de laboratoristas nos últimos anos. O mesmo ocorre no sector de imagem, onde equipamentos mais modernos de raio-X têm eliminado mão-de-obra, tanto na operação do equipamento como na revelação da chapa.



O mesmo não se verifica no processo de trabalho médico, seja no ambulatório, seja na cirurgia. Os novos equipamentos utilizados para melhorar um determinado diagnóstico, como é o caso de tomógrafos computadorizados, não eliminam o médico e até criam um novo tipo de profissional para fazer funcionar este equipamento.

A tecnologia em Saúde só tem permitido a redução do emprego quando é aplicada em processos de trabalho de fluxo contínuo. O mesmo não ocorre quando a tecnologia se aplica em processos de fluxo descontínuo, como é o caso de consultas ou cirurgias, por exemplo.

Algumas evidências mais recentes mostram a existência de um espaço para substituir a força de trabalho em Saúde por capital, mediante a transformação de processos de trabalho de fluxo descontínuo para contínuo, como é o caso das cirurgias, ou até mesmo automatizando rotinas associadas a processos de trabalho e fluxo descontínuo (como consultas).

No campo da cirurgia, cabe mencionar que os meios modernos de diagnóstico a partir de tecnologias de imagem (tomógrafo, ultrassonógrafos, etc.) permitem obter pré-diagnósticos bem precisos no que tange a localização de tecidos ou órgãos a serem submetidos a intervenções cirúrgicas. Ao mesmo tempo, o processo de robotização já utilizado em muitos ramos de actividade, poderá permitir, num futuro não muito distante, acumular informações e dispor da leveza de movimentos necessários a realização de intervenções cirúrgicas.

No segundo caso, existem softwares desenvolvidos pela própria Organização Mundial da Saúde que permitem, com a entrada necessária de informações e resultados de exames (se necessário), fazer o diagnóstico e a prescrição de medicamentos para todos os tipos de doença existentes na Classificação Internacional de Doenças (CID).

Logicamente que o processo técnico em Saúde cria a necessidade de incorporar, a cada ano, uma imensa massa de informações para os Bancos de Dados assessorados por este software. A criação futura de meios mais baratos e condensados de armazenamento de grandes massas de informação permitirá colocar tal tecnologia à disposição não apenas de médicos, mas também de outras pessoas que não detenham necessariamente formação em Saúde.

Estes dois exemplos mostram que existem perspectivas, não apenas de uma redução, mas também de uma redefinição do trabalho médico a partir destes processos.

A tecnologia do "laser" e do ultra-som tem permitido eliminar intervenções cirúrgicas em determinados procedimentos. A tecnologia de materiais tem criado órgãos artificiais que permitem a substituição de partes do corpo humano, através de órteses e próteses. O desenvolvimento recente da micromecânica tem criado motores da espessura de um fio de cabelo, capazes de desobstruir artérias e evitar riscos de doenças cardiovasculares sem cirurgia, a partir de monitorização remota. A informática permite a criação de "pílulas inteligentes", capazes de medir in loco a condição de saúde e ministrar a quantidade certa de medicamento requisitada pelo organismo.

No campo da biotecnologia e da engenharia genética têm-se alcançado grandes progressos que poderão aumentar a importância da prevenção e individualizar a acção preventiva, munindo cada indivíduo com todas as informações necessárias sobre as suas predisposições (mapa genético) a determinadas doenças.

A tecnologia da prevenção tem avançado bastante. O advento das empresas médicas e a generalização seguro-saúde tem tornado atraente a utilização da prevenção como forma de evitar uma maior frequência de consultas e internamentos, os quais oneram os custos das empresas médicas que operam sob a forma de seguro. A prevenção permite não só reduzir os custos, como também tomar mais baratas as mensalidades e, portanto, mais competitivas as empresas médicas no mercado.

Apesar de todos esses pontos positivos, as novas tecnologias em Saúde trazem uma série de implicações negativas, cabendo destacar:

a) Custos crescentes - Estudos feitos por lan Gough demonstram que existem quatro elementos que têm aumentado os custos da atenção médica na modernidade: tecnologia, ampliação da cobertura populacional, envelhecimento da população e novas modalidades de atenção médica.

b) Menor Acessibilidade - Na medida em que a atenção médica se torna progressivamente mais cara, menor é a possibilidade de aceso dos segmentos desfavorecidos, especialmente nos países do terceiro mundo, o que traz desníveis sociais no próprio acesso a manutenção da vida;

c) Maior Controlo Individual - As novas descobertas no campo da engenharia genética permitirão seleccionar previamente os indivíduos de acordo com as suas aptidões e as suas tendências delimitadas no mapa genético. Ao mesmo tempo em que isto traz possibilidades para as empresas na selecção de pessoal, acarreta em grande perda da liberdade individual.



A questão científica e tecnológica em Saúde engloba também o estudo da chamada "medicina alternativa", a qual não é unitária, mas sim bastante fragmentada, envolvendo temas como a Homeopatia, a Acupunctura, a Naturopatia, a Fitoterapia, a Osteopatia, a Quiropraxia, entre outras. Apesar das práticas alternativas serem bastante antigas, elas crescem no seio das próprias sociedades capitalistas ao longo dos anos sessenta e setenta. O crescimento destas práticas não se prende apenas aos aspectos técnicos, mas também aos ideológicos. O facto de serem mais baratas, não estarem associadas a hegemonia hospitalar e não trazerem em grande parte os efeitos colaterais da medicina oficial, passaram a ser grandes os factores de atracção das camadas médias urbanas para estas práticas.

A elas associavam-se, também, aspectos que transmitiam maior afectividade no processo saúde-doença, distinguindo-as da frieza da relação médico-doente existente nas instituições ambulatórias e hospitalares.

No entanto, boa parte destas práticas passou a ser absorvida pelas sociedades de mercado, pela indústria e electrónica, fazendo com que até mesmo o rótulo de "alternativa" a elas associado seja questionável.

Outro ponto a destacar diz respeito à chamada "medicina simplificada" ou ainda à "atenção primária à saúde", que têm sido ventiladas por organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde como a solução tecnológica para os males dos países do terceiro mundo.

Partindo da concepção de que estes países têm um quadro nosológico distinto do das nações desenvolvidas, os adeptos dessas estratégias propõem uma medicina sem sofisticação tecnológica, com forte conteúdo de prevenção e educação sanitária, baseada em agentes comunitários e médicos de miseráveis.

Como se sabe, estes países passaram nas duas últimas décadas por um intenso processo de urbanização. Apesar da grande participação das chamadas "doenças da pobreza", o perfil de morbi-mortalidade dos países do terceiro mundo apresenta hoje forte presença das chamadas doenças crónico degenerativas, como as cardiomiopatias, as neoplasias, os acidentes e as mortes violentas. Tudo isto fica agravado pela pobreza reinante.

Ao que tudo indica, portanto, a questão da ciência e da tecnologia em Saúde não pode ser discutida sem se pensar na equidade. A medicina simplificada não é a panaceia para todos os males dos países subdesenvolvidos.

A ênfase na sua utilização sem pensar na incorporação da tecnologia de ponta, poderá fazer com que os diferenciais entre os padrões de atenção à Saúde, do centro, e da periferia, se tornem mesmo intransponíveis.



Para podermos seguir uma estratégia que tenha como suporte uma realidade objectiva, debrucemo-nos sobre o PLANO NACIONAL DE SAÚDE do Governo de Portugal que traçou os caminhos a seguir para o período de 2004-2010.



CAPÍTULO II

Educação para a Saúde e prevenção da Doença

Introdução

O Plano Nacional de Saúde 2004 - 2010 define orientações estratégicas com a finalidade de sustentar, política, técnica e financeiramente, uma vontade nacional, dando-lhe um cunho integrador e facilitador na coordenação e intercolaboração dos múltiplos sectores que contribuem para a saúde. Todo o trabalho contemplado neste documento visa três grandes objectivos estratégicos:

  • Obter ganhos em saúde, aumentando o nível de saúde nas diferentes fases do ciclo de vida e reduzindo o peso da doença;

  • Utilizar os instrumentos necessários, num contexto organizacional adequado, nomeadamente centrando a mudança no cidadão, capacitando o sistema de saúde para a inovação e reorientando o sistema prestador de cuidados;

  • Garantir os mecanismos adequados para a efectivação do Plano, através de uma cativação de recursos adequada, promovendo o diálogo intersectorial, adequando o quadro de referência legal e criando mecanismos de acompanhamento e actualização do Plano.

Este segundo volume, depois do primeiro que define prioridades, integra num todo coerente os contributos recebidos sobre como obter mais ganhos em saúde, por um lado, e como gerir os instrumentos que temos para mudar o sistema de forma a potenciar os ganhos em saúde desejados, por outro.



Ponto de Partida



As orientações e actividades identificadas estão pensadas no contexto do Programa do XV Governo Constitucional3 e das respectivas Grandes Opções do Plano (GOP)4, do que se conhece sobre a saúde5 e o sistema de saúde6 em Portugal, de um anterior documento sobre as estratégias da saúde7, do Programa de Saúde Pública da União Europeia (UE)8, das orientações da OMS sobre Health for All9, do mais recente relatório da OMS sobre saúde na Europa10 e do trabalho relevante que tem vindo a ser desenvolvido pela OCDE11.

  1. O Programa do XV Governo Constitucional pode ser consultado em www.governo.gov.pt

  2. Lei n.º 32-B/2002 de 30 de Dezembro - Grandes Opções do Plano para 2003; Lei n.º 107-A /2003, de 31 de Dezembro - Grandes Opções do Plano para 2004.

  3. Portugal. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde - Ganhos de Saúde em Portugal: ponto da situação. Relatório do Director-Geral e Alto-Comissário da Saúde. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, 2002.

  4. Relatórios da Primavera de 2001, 2002 e 2003 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. ver em www.observaport.org

  5. Portugal. Ministério da Saúde.- Saúde: um compromisso. A estratégia de saúde para o virar do século (1998-2002). Lisboa: Ministério da Saúde, 1999.

  6. Decisão n.º 1786/2002/CE ( JOL 271, de 09.10.2002, p. 1).

  7. World Health Organization - Health 21: Health for All in the 21st century. Copenhagen: WHO, Regional Office for Europe, 1999.

  8. World Health Organization - The World Health Report 2002: Reducing Risks, Promoting Healthy Life. Geneva: WHO, 2002.

  9. Organisation for the Economic Cooperation and Development - OCDE PWB Reform: Introducing Results-based Planning, Budgeting and Management. Paris: OCDE, Committee on Financial Markets, 28 October 2003.



Estado de saúde dos Portugueses

A saúde potencial pode ser percebida como uma possibilidade para uma maior ausência de doença, para um maior bem-estar ou para uma maior aptidão funcional.



Potencial para a ausência de doença

Em 2000/2001, a esperança de vida à nascença da população portuguesa era, para ambos os sexos, de 76,9 anos, mantendo-se abaixo da média europeia, situada em 78,2 anos. O sexo masculino apresentava uma esperança de vida de 73,5 anos, sendo a média da União Europeia de 75,2 anos. O sexo feminino apresentava uma esperança de vida de 80,3 anos, ainda abaixo da média europeia, correspondente a 81,2 anos12.

Os Anos de Vida Potencial Perdidos (AVPP) na população portuguesa corresponderam, em 2001, a um total de 517 082 anos, sendo 360 408 referentes ao sexo masculino e 156 674 referentes ao sexo feminino.

A mortalidade, em 2002, registou um acréscimo de apenas 0,2%, face ao ano anterior, sendo a idade média dos falecidos cada vez maior13. Em 2002, a taxa de mortalidade infantil pareceu suspender a tendência de declínio constante que se verificava desde a década de sessenta. Em 2001, Portugal ocupa já uma posição mediana para este indicador, face aos restantes países europeus14.

As principais causas de morte da população portuguesa, referentes ao ano de 2001, são as doenças do aparelho circulatório e os tumores malignos. As causas externas são importantes nos grupos mais jovens15. A evolução da epidemiologia destas patologias reflecte avanços importantes, assim como oportunidades para mais ganhos em saúde.

As doenças do aparelho circulatório, nomeadamente as doenças cerebrovasculares e a doença isquémica cardíaca, encontram-se entre as principais causas de morbilidade, invalidez e mortalidade em Portugal, sendo a terceira e a quarta causas de AVPP, respectivamente, uma das razões por que constituem um importante problema de saúde pública, que é prioritário resolver. A elevada prevalência dos factores de risco associados às doenças do aparelho circulatório, nomeadamente o tabagismo, a hipertensão arterial, a hipercolesterolémia e o sedentarismo, obriga a que seja dada uma especial atenção à sua prevenção, bem como à adopção de medidas integradas e complementares, que potenciem a redução do risco de contrair aquelas doenças e a concretização do seu rápido e adequado tratamento16.

A mortalidade por cancro em Portugal estabilizou. A mortalidade global por cancro é mais elevada nos homens do que nas mulheres. Portugal representa na UE, para a mortalidade por cancro nos homens, uma das excepções à tendência actual, que é de crescimento. Comparando os indicadores de Portugal com os dos melhores países da UE, considera-se ser possível reduzir a mortalidade prematura em 38% no caso dos homens e 10% no das mulheres. O cancro da mama continua a ser a causa de morte por cancro mais comum entre as mulheres. No entanto, em Portugal a mortalidade sofreu uma redução; comparando os indicadores de Portugal com os dos melhores países da UE (13,5 por 100 000, em 1998), é possível considerar a possibilidade de reduzir de uma forma significativa a mortalidade precoce. O cancro do cólon e recto representa a terceira causa de morte mais comum para os homens e a segunda para as mulheres, e a mortalidade tem vindo a aumentar. O cancro do colo do útero tem sido considerado como prevenível através de rastreio por citologia. Os dados referem uma baixa mortalidade, que não tem sofrido aumento nas mulheres mais jovens17.

Os acidentes e as suas consequências (traumatismos, ferimentos e lesões) são a principal causa de morte nas crianças e nos jovens, a partir do primeiro ano de vida, determinando um número muito elevado de AVPP. Por outro lado, geram um grande número de situações de deficiência e perda de funcionalidade entre os jovens, cujos custos económicos e psicossociais são elevados, embora difíceis de calcular. Nos adultos, os acidentes de viação e os laborais impõem custos elevados à vítima, à família e à sociedade. Quando ocorrem em pessoas mais idosas, são uma causa importante de morbilidade, incapacidade, dependência e mortalidade. Uma parte significativa destes acidentes, principalmente dos de viação, está associada ao consumo excessivo de álcool. Assim, os acidentes são um factor importante de ocorrência de incapacidades permanentes, para as quais o sistema de saúde português tem pouca possibilidade de resposta18.

A existência de assimetrias regionais no estado de saúde da população portuguesa reflecte, por um lado, diferentes costumes regionais, associados, nomeadamente, aos estilos de vida, mas pode, por outro lado, ser reveladora de iniquidades de acesso das populações aos cuidados de saúde19.

  1. Portugal. Instituto Nacional de Estatística - Estatísticas Demográficas 2001. Instituto Nacional de Estatística, Eurostat Database, 2001.

  2. Portugal. Instituto Nacional de Estatística - Destaque do INE, Estatísticas Demográficas - Mortalidade, Resultados definitivos de 2002. Lisboa: INE, 2003.

  3. Portugal. Instituto Nacional de Estatística - Destaque do INE, Estatísticas Vitais, Resultados definitivos de 2002. Lisboa: INE, 2003.

  4. Portugal. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde - Risco de morrer em Portugal, 2001. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, 2003.

  5. Portugal. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde - Ganhos de Saúde em Portugal: ponto da situação: relatório do Director-Geral e Alto-Comissário da Saúde. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, 2002.

  6. cfr.

  7. cfr.

  8. Santana, P. - Poverty social exclusion and health in Portugal. Society Science Medicine; 55(1) 33-45.



Potencial para um maior bem-estar

A opinião que cada pessoa tem do seu estado de saúde é um indicador recomendado pela OMS para a avaliação do estado de saúde das populações20.

Entre os Inquéritos Nacionais de Saúde (INS) de 1995/1996 e de 1998/1999, houve uma diminuição, embora pequena, da percentagem de pessoas que consideraram o seu estado de saúde "muito mau" ou "mau" e um ligeiro aumento da percentagem de pessoas que consideraram o seu estado de saúde como "bom".

Esta evolução verifica-se tanto para o sexo masculino, como para o feminino. A percentagem de pessoas que avaliaram o seu estado de saúde como "muito bom" ou "bom" é superior nos homens, em ambos os INS, e em todos os grupos etários. Também em ambos os sexos se pode notar um ligeiro aumento dos valores de 1995/96 para os de 1998/99. Por outro lado, as mulheres consideraram o seu estado de saúde como "mau" ou " muito mau" mais frequentemente do que os homens, podendo observar-se uma diminuição em ambos os sexos entre os dois INS. O comportamento da categoria "razoável" parece não ter variado de forma apreciável entre ambos os INS. A categoria "muito bom" não sofreu variação.

A percentagem de pessoas que apreciaram o seu estado de saúde como "muito bom" ou "bom" decresce ainda com a idade, em ambos os sexos, o que corresponde a uma percepção do estado de saúde como "mau" ou " muito mau" mais frequentemente pelos mais idosos. De referir uma discriminação mais nítida entre os sexos a partir do grupo etário dos 45 aos 54 anos.

O comportamento da categoria "razoável" é interessante, já que é diferente antes e depois do grupo etário dos 45 aos 54 anos. De facto, nos grupos etários abaixo dos 45 anos, a auto-apreciação de um estado de saúde "razoável" é mais frequente nas mulheres, enquanto que depois dos 55 anos ela é mais frequente nos homens. Também a evolução desta categoria de resposta entre os INS parece ser diferente antes e depois do referido grupo etário.

Estes resultados sugerem uma possível alteração no padrão de distribuição da auto-apreciação do estado de saúde em Portugal entre 1995/1996 e 1998/1999, mais evidente nos grupos etários acima do escalão dos 45 - 54 anos. Nos grupos etários mais jovens, a evolução não terá sido tão clara21. Identifica-se também como oportunidade o potencial para reduzir as desigualdades na autoapreciação do estado de saúde entre homens e mulheres.

  1. World Health Organization - Health Interview Surveys: Towards international harmonization of methods and instruments. Copenhagen: WHO Regional Publications European Series n.º 58. 1996.

  2. Graça, M.J.; Dias, C.D. - Como as pessoas avaliam o seu próprio estado de saúde em Portugal. Dados dos Inquéritos Nacionais de Saúde de 1995/1996 e de 1998/1999 In Observações n.º 11. Lisboa: Observatório Nacional de Saúde, Março 2001.

Potencial para uma melhor aptidão funcional

Em 2001, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge publicou os resultados de um projecto que, entre outros indicadores, permitiu obter informação sobre as capacidades funcionais de indivíduos idosos. Os resultados indicam que 8,3% dos indivíduos declaram apresentar grandes incapacidades, estimando-se em 12% a percentagem de indivíduos que declara precisar de ajuda para actividades da vida diária. No estudo, os indivíduos que declaram possuir incapacidade do tipo funcional obtêm, na grande maioria (92,5%), ajuda quase diária22. Estes resultados são importantes, num contexto de um grande desconhecimento sobre as capacidades funcionais nos diferentes grupos etários em Portugal. No momento em que se dão os primeiros passos dos serviços de cuidados continuados, estes valores têm grande interesse para apoiar a tomada de decisão.

  1. Branco, M.J.; Nogueira, P.J.; Dias, C.D. - MOCECOS: uma observação dos cidadãos idosos no princípio do século XXI. Lisboa: Observatório Nacional de Saúde. Outubro de 2001.



Cuidados de saúde primários

Em 2001, a oferta de cuidados de saúde primários (CSP) pelo SNS era assegurada por 363 centros de saúde, distribuídos por Portugal continental, com 1 797 extensões. No mesmo ano, o SNS contava com 6 961 médicos, 6 850 enfermeiros e 875 técnicos de diagnóstico e terapêutica para desenvolver as actividades associadas aos CSP31.

Mais recentemente, em 2003, foi redefinida a rede de prestação de cuidados de saúde primários, ficando constituída pelos "centros de saúde integrados no SNS, pelas entidades do sector privado, com ou sem fins lucrativos, que prestem cuidados de saúde primários a utentes do SNS nos termos de contratos celebrados (...), e, ainda, por profissionais e agrupamentos de profissionais em regime liberal, integrados em cooperativas ou outras entidades (...)"32. O modelo de articulação dos CSP com a restante rede de prestação de cuidados parece não ter encontrado até hoje uma fórmula feliz de harmonizar as necessidades de gestão eficiente do sistema com a liberdade de escolha do cidadão e as aspirações dos grupos profissionais envolvidos.

  1. Portugal, Instituto Nacional de Estatística. Estatística da Saúde:2001. Lisboa: INE, 2003.

  2. Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de Abril. Art.º 1, n.º 2 - reorganiza os Cuidados de Saúde Primários.



Cuidados hospitalares

Em 2001, o Sistema de Saúde era composto por um total de 38 452 camas de internamento, distribuídas da seguinte forma: cerca de 74% pertencente à rede pública, que inclui o SNS e as Regiões Autónomas, 3% à área oficial não pública (designadamente, estabelecimentos militares, paramilitares e prisionais) e 23% a outros estabelecimentos (destes outros estabelecimentos, 78% das camas pertencem ao sector social e 22% ao sector privado com fins lucrativos)33.



Por seu turno, a rede hospitalar do SNS, em 2001, era composta por 88 hospitais (13 centrais, 40 distritais, 22 de nível um e 13 especializados), com uma capacidade de internamento variável (desde hospitais com cerca de 50 camas até outros com cerca de 1 500), num total de 23 673 camas. Em termos de recursos humanos, a rede hospitalar do SNS dispunha, no mesmo ano, de 15 862 médicos, 24 872 enfermeiros e 5 536 técnicos de diagnóstico e terapêutica34.

  1. Portugal, Instituto Nacional de Estatística. Estatística da Saúde:2001. Lisboa: INE, 2003.

  2. Portugal, Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde - Portugal Saúde: Indicadores Básicos 2000. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, 2003.



Cuidados continuados

Em 2003, foi aprovada a Rede de Cuidados Continuados, constituída por "todas as entidades públicas, sociais e privadas, habilitadas à prestação de cuidados de saúde destinados a promover, restaurar e manter a qualidade de vida, o bem-estar e o conforto dos cidadãos necessitados dos mesmos em consequência de doença crónica ou degenerativa, ou por qualquer outra razão física ou psicológica susceptível de causar a sua limitação funcional ou dependência de outrem, incluindo o recurso a todos os meios técnicos e humanos adequados ao alívio da dor e do sofrimento, a minorar a angústia e a dignificar o período terminal da vida"35. Este recente diploma legal, em fase inicial de concretização prática, visa garantir um regime de complementaridade e estreita articulação entre as redes de cuidados de saúde primários e hospitalares.

  1. 35 Decreto-Lei n.º 281/2003, de 8 de Novembro - Cria a Rede de Cuidados Continuados.



Cuidados de saúde mental

Os serviços prestadores de cuidados de saúde mental integrados no SNS abrangem, em 2003, 36 estabelecimentos de psiquiatria e pedopsiquiatria e 3 centros regionais de alcoologia, com uma capacidade global de internamento de 2 640 camas (60,2% das camas existentes estão concentradas em 5 hospitais psiquiátricos). Em termos de recursos humanos, há 422 psiquiatras, 160 psicólogos, 40 pedopsiquiatras, 124 técnicos de serviço social, 65 terapeutas ocupacionais, 1 227 enfermeiros, 5 técnicos de psicomotricidade, 15 terapeutas da fala, 9 educadores de infância, 3 técnicos de educação, 7 professores de ensino especial e 7 clínicos gerais36.

Para além destes cuidados de saúde mental integrados no SNS, existe, sob a tutela do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), uma rede nacional de serviços de saúde locais desconcentrados, constituída por unidades especializadas de cuidados de saúde para toxicodependentes. Em 200237, estas unidades caracterizavam-se da seguinte forma:

Quarenta e cinco Centros de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) - unidades-tipo prestadoras de cuidados compreensivos e globais a toxicodependentes que procuram tratamento. Estas unidades assentam a sua intervenção em equipas multidisciplinares, constituídas por médicos de várias especialidades (com destaque para a psiquiatria, mas também medicina interna, medicina familiar, saúde pública), psicólogos, enfermeiros, técnicos de serviço social e técnicos psicossociais. Complementam este nível de prestação de cuidados 9 extensões de CAT, 17 locais de consultas descentralizados, 3 núcleos de atendimento a toxicodependentes e 4 Centros de Dia. Existem ainda 5 Centros de Dia privados, em regime de convenção.

Cinco Unidades de Desabituação (UD) - estas unidades oferecem um total de 45 lugares para internamento de curta duração (sete dias) e estão distribuídas ao longo do território nacional (uma no Porto, uma em Coimbra, uma em Olhão e duas em Lisboa). Existem ainda sete clínicas de desabituação privadas, em regime de convenção, que adicionam mais 77 lugares disponíveis e complementam estes serviços.

Duas Comunidades Terapêuticas (CT) - estas unidades oferecem um total de 34 lugares, estando uma em Coimbra e outra em Lisboa. São estruturas residenciais de longa duração, em regime de internamento, com atendimento psicoterapêutico e socioterapêutico. Existem ainda 64 Comunidades Terapêuticas privadas, em regime de convenção, que oferecem mais 1 226 lugares disponíveis e complementam estes serviços.

  1. Portugal. Ministério da Saúde. Direcção Geral da Saúde - Rede de Referenciação de Psiquiatria e Saúde Mental. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, 2003 (a publicar).

  2. Portugal. Instituto da Droga e da Toxicodependência - Relatório Anual 2002: a Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências. Vol. I. Informação Estatística 2002. Lisboa: IDT, 2003.





Desempenho do sistema

A OMS publicou o Relatório sobre a Saúde Mundial em 200038, onde, pela primeira vez, se comparam os sistemas de saúde dos 191 países membros da Organização.

Este relatório examinou todos os países segundo grandes áreas, designadamente o nível de saúde global da população39, a distribuição da saúde entre os habitantes, a capacidade de resposta do sistema de saúde40, a repartição dessa resposta segundo o nível económico das pessoas e a distribuição do custo de saúde entre os cidadãos.

Embora este estudo não esteja isento de críticas, nomeadamente por representar apenas algumas funções dos sistemas de saúde, o certo é que Portugal ficou classificado em décimo segundo lugar no ranking global do desempenho dos sistemas de saúde, à frente de países como a Grã-Bretanha, a Alemanha, o Canadá e os Estados Unidos da América.

Na verdade, os sistemas de saúde dos diversos países não são comparados em termos absolutos. Esta posição leva em consideração a relação do sistema de saúde com o nível de desenvolvimento socioeconómico de cada país, razão pela qual Portugal, estando em desvantagem neste aspecto perante os demais países desenvolvidos, se destaca relativamente à qualidade do serviço de saúde disponibilizado neste contexto.

Assim, apesar desta posição honrosa, quando se compara Portugal com outros países da OCDE, a sua despesa da saúde peca por um elevado nível de recursos em relação ao PIB, uma despesa pública per capita baixa, uma despesa excessiva com fármacos, assim como uma maior despesa com o sector privado, em relação a outros países com SNS.

O desempenho em relação à equidade, eficiência, responsabilização e capacidade de resposta também fica aquém do que seria de esperar. As infra-estruturas organizacionais estão desactualizadas e, apesar de legisladas, tentativas anteriores de reforma do sistema de saúde nunca foram completamente implementadas41.

  1. WHO - World Health Report 2000. Health Systems: Improving Performance. Genebra: World Health Organization, 2000.

  2. Determinado sobretudo pelo Disability Adjusted Life Expectancy - DALE - ou esperança de vida sã.

  3. Que inclui o respeito pela dignidade do doente (designadamente, o direito à confidencialidade, autonomia da pessoa e dos seus familiares para decidirem sobre a sua saúde, entre outros), a orientação para o doente (celeridade no atendimento médico, acesso a redes de apoio social durante os cuidados prestados, qualidade das instalações e liberdade de escolha) e a disponibilidade de recursos. Este indicador traduz uma mistura entre o funcionamento geral da saúde e a satisfação do doente, constituindo, porventura, a relação mais difícil de medir.

  4. Bentes, M.; Dias, C.M.; Sakellarides, C. - Health Care Systems in Transition: Portugal. Copenhagen: The European Observatory on Health Care Systems, 2003.


ESTRATÉGIAS

Introdução

O Plano Nacional de Saúde 2004 - 2010 define orientações estratégicas com a finalidade de sustentar, política, técnica e financeiramente, uma vontade nacional, dando-lhe um cunho integrador e facilitador na coordenação e intercolaboração dos múltiplos sectores que contribuem para a saúde. Todo o trabalho contemplado neste documento visa três grandes objectivos estratégicos:




  • Obter ganhos em saúde, aumentando o nível de saúde nas diferentes fases do ciclo de vida e reduzindo o peso da doença;

  • Utilizar os instrumentos necessários, num contexto organizacional adequado, nomeadamente centrando a mudança no cidadão, capacitando o sistema de saúde para a inovação e reorientando o sistema prestador de cuidados;

  • Garantir os mecanismos adequados para a efectivação do Plano, através de uma cativação de recursos adequada, promovendo o diálogo intersectorial, adequando o quadro de referência legal e criando mecanismos de acompanhamento e actualização do Plano.





No segundo volume do P.N.S., depois do primeiro que define prioridades, integra num todo coerente os contributos recebidos sobre como obter mais ganhos em saúde, por um lado, e como gerir os instrumentos que temos para mudar o sistema de forma a potenciar os ganhos em saúde desejados, por outro.

Estratégias Para Obter Mais Saúde Para Todos

Na sua globalidade, os indicadores disponíveis indicam, para o conjunto nacional, ganhos em saúde sustentados, década após década. No entanto, a nossa capacidade para compreender a realidade nacional e planear com mais detalhe as intervenções conducentes a ainda mais ganhos em saúde, está condicionada pelo limitado leque de indicadores disponíveis, reflexo do mau funcionamento do nosso sistema de gestão da informação e do conhecimento.

Para mais ganhos em saúde de uma forma global, tendo em conta a situação na União Europeia e a situação em Portugal, definem-se como prioritárias as estratégias centradas na família e no ciclo de vida e na gestão da doença ou enfermidades.


Abordagem centrada na família e no ciclo de vida

De entre as várias abordagens possíveis para compreender a saúde e planear as intervenções necessárias, as que se baseiam no ciclo de vida estão a ganhar cada vez mais visibilidade1, particularmente em relação aos problemas de origem social. A abordagem do ciclo vital justifica-se pelo facto de permitir uma melhor visualização, mais integrada, do conjunto de problemas de saúde que devem ser priorizados para os diferentes grupos etários, nos diferentes papéis sociais que vão assumindo ao longo da vida em diferentes settings, de acordo com o género. O ciclo de vida realça também momentos especiais, como o nascer, o morrer e outros momentos como a entrada para a escola, o primeiro emprego, o casamento, o divórcio, a reforma, entre outros, que representam oportunidades para a educação para a saúde, para acções de prevenção, para rastreios de doenças e outras intervenções.

Neste contexto, destacar-se-á cada vez mais a promoção da saúde e o papel dos agentes de educação para a saúde, que beneficiam dos conhecimentos relacionados com o desenvolvimento humano, aplicados ao contexto comunitário em que actuam e da proximidade das pessoas que são alvo desta abordagem. A utilização cada vez maior de instrumentos psicopedagógicos para o desenvolvimento saudável e responsável e para a implementação das mudanças necessárias a um bem-estar global do indivíduo, da família e da comunidade é o foco natural de uma nova cultura, centrada no cidadão, a ser implantada na área da Saúde.

  1. Kuh, D.; Shlomo, Y.B.. - A life course approach to chronic disease epidemiology. New York: Oxford University Press, 1997.



Nascer com saúde 2

Situação actual

Cobertura dos serviços de saúde

A Reprodução Médica Assistida é realizada em seis centros3, número considerado adequado.

Há uma elevada cobertura em cuidados de saúde reprodutiva, para a qual tem contribuído a Rede de Referenciação Materno-Infantil (RRMI).

É relativamente elevada a cobertura dos serviços pré e perinatais.

A percentagem de grávidas que em Portugal têm, pelo menos, uma consulta pré-natal durante a gravidez parece ser superior a 98%, com mais de 80% a iniciar a vigilância antes da 16.ª semana de gravidez e mais de 80% a realizar esquemas de vigilância considerados adequados.

Persiste alguma controvérsia sobre todas as enfermidades que deveriam ser objecto de programas de rastreio durante o período pré-natal.



O relatório de avaliação das actividades dos serviços na área do diagnóstico pré-natal (DPN) mostra um aumento do número de instituições que executam técnicas invasivas e do total de exames efectuados.

Mais de 60% das puérperas efectuam consultas de revisão do puerpério.

Mais de 90% de mães afirmam estar a utilizar um método contraceptivo pós-parto4.

É também elevada a utilização de métodos contraceptivos por todos os grupos da idade reprodutiva, designadamente o dos adolescentes.

Mantém-se baixa a cobertura com consultas médicas pré-concepcionais.

A maior parte dos partos são realizados nos hospitais do SNS (mais de 90%), com taxas de cesarianas demasiado elevadas, superiores a 20%.

Começa a agudizar-se a questão da escassez de recursos humanos - médicos e enfermeiros - disponíveis para o cumprimento, de acordo com os padrões estabelecidos, das actuais urgências obstétricas.



Melhoria sustentada dos indicadores de saúde reprodutiva
Continua a observar-se uma redução da mortalidade materna.

A percentagem de bebés nascidos com muito baixo peso em hospitais de apoio perinatal diferenciado já ronda os 90%.

Salienta-se também a tendência decrescente da mortalidade perinatal.

Alguns indicadores mantêm-se resistentes às melhorias desejáveis.



Mantém-se actual a questão da gravidez não desejada e as suas consequências.

É possível esperar ganhos bastante significativos na área de comportamentos reprodutivos promotores da saúde.

Subsistem franjas da população com cuidados de saúde reprodutiva inadequados: em particular, as mulheres com baixa escolaridade e fracos recursos económicos, onde permanece elevada a percentagem de gravidezes com vigilância inadequada.

Persistem aspectos preocupantes da morbimortalidade dos recém-nascidos, em particular dos de muito baixo peso, que nasceram fora dos hospitais de apoio perinatal diferenciado. Está a aumentar a percentagem de crianças com baixo peso à nascença, facto geralmente associado a uma baixa idade gestacional.

De entre as anomalias congénitas, o grupo mais frequentemente referido é o das anomalias cardiovasculares, seguindo-se os grupos das anomalias dos membros, urogenitais e musculo-esqueléticas5,6.

Portugal permanece o país da UE com a mais elevada taxa de incidência de sífilis congénita.



Orientações estratégicas e intervenções necessárias

Dar prioridade ao aumento de cobertura no período pré-concepcional e no puerpério

Será desenvolvida legislação sobre a Reprodução Médica Assistida, que enquadrará todo o conjunto de actividades e problemáticas que com ela estão associadas.

Aumentar-se-á o número de casais que efectua uma consulta médica no período pré-concepcional com o objectivo de preparar uma gravidez.

Dar-se-á prioridade ao programa de diagnóstico pré-natal (DPN), de forma a alcançar um número crescente de grávidas, prestando especial atenção ao controlo de qualidade dos exames ecográficos da gravidez.

Aumentar-se-ão os esforços dirigidos às adolescentes e às minorias étnicas.

Dar-se-á uma maior atenção ao diagnóstico e tratamento das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).

Prestar-se-á uma maior atenção à promoção da saúde mental na gravidez e no primeiro ano pós-parto, através dos Cuidados de Saúde Primários (CSP).

Envidar-se-ão todos os esforços para aumentar ainda mais a taxa de cobertura das puérperas, a um ritmo de 5% ao ano, de modo a atingirem-se valores próximos dos 100%, ao fim de 8 a 10 anos.

Dar-se-á continuidade ao reforço das garantias em Saúde Sexual e Reprodutiva.



Facilitar-se-á o acesso aos cuidados de planeamento familiar, inclusive nas situações de infertilidade7.

Continuar-se-ão a desenvolver acções dirigidas a públicos específicos, como, por exemplo, adolescentes e os grupos mais vulneráveis - minorias pobres urbanas - que apresentam piores indicadores na área da saúde reprodutiva, nomeadamente, através das Autoridades Regionais de Saúde; continuar-se-á a investir na utilização de unidades móveis.

Propor-se-ão, como medida a incentivar os Centros de Saúde, as actividades de visita ao domicílio em moldes e situações a (re)definir.

Reforçar-se-á a promoção de comportamentos saudáveis, durante a gravidez, sobretudo dos que visam a diminuição de risco, nomeadamente quanto ao consumo de tabaco e de álcool e à possibilidade de infecção por IST.

Assegurar-se-ão condições de exercício da autodeterminação sexual de mulheres e homens, assente num processo educativo integrado e na progressiva adequação dos serviços prestadores de cuidados.

As taxas de cesarianas serão contempladas nos indicadores de qualidade utilizados para monitorizar o desempenho dos hospitais. A preparação para o parto, tanto física como psiquicamente, com equipas de profissionais disponíveis, será feita no sentido de contrariar a elevada percentagem actual, reduzindo-a em 2-5% ao ano, até se atingir os níveis europeus mais baixos.

Um excesso de partos por cesariana resultará, inicialmente, em auditorias internas com discussão interpares.



Melhorar ainda mais os indicadores no período perinatal
Será reduzida a mortalidade por anóxia e hipóxia perinatais.

Será erradicada a sífilis congénita.

Será dado destaque ao aleitamento materno, como um critério de qualidade dos cuidados de saúde perinatais.

Settings prioritários

  1. Os Settings a privilegiar nesta fase do ciclo de vida incluem a família, a escola, a universidade, o local de trabalho, os locais de lazer e as unidades de saúde.

  2. Gravidez e período neonatal.

  3. Dois centros em Lisboa, dois no Porto, um em Coimbra e um em Guimarães.

  4. Portugal. Direcção-Geral da Saúde - Necessidades Não Satisfeitas em Saúde Materna e Planeamento Familiar. Relatório do Estudo Realizado em 1997/98, Lisboa: DGS, 2000.

  5. Contudo, das maternidades e hospitais que fazem a participação de anomalias, 26% não notificaram casos nesse ano.

  6. INSA - Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas: Relatório 1997 (Policopiado). Lisboa: INSA, 2001.

  7. Portugal. Direcção-Geral da Saúde - Actividades de Planeamento Familiar: avaliação do cumprimento do Despacho n.º 12 782/98 (2.ª Série). Actual DL n.º 259/2000, de 17 de Outubro (policopiado). Lisboa: DGS, 2001.

 

Crescer com segurança 8

Situação actual
Elevada cobertura, mas fraca articulação entre serviços
É relativamente elevada a cobertura por serviços de saúde dirigidos às crianças.

A cobertura do programa nacional de vacinação é elevada.



O Programa Tipo de Vigilância da Saúde, recentemente actualizado, necessita maior implementação.

Nos grupos de centros de saúde onde as unidades coordenadoras funcionais (UCF)9 têm sido actuantes, constata-se uma melhoria na acessibilidade e na qualidade dos cuidados prestados e uma melhor articulação entre os cuidados de saúde primários e hospitalares, para a qual tem contribuído a RRMI.

A linha telefónica pediátrica Saúde 24 - Dói, Dói, Trim, Trim - dirigida ao grupo etário dos 0-14 anos, tem tido aceitação crescente por parte dos pais e tem demonstrado diminuir o afluxo aos serviços de urgência por parte da população que a ela recorre.



Melhoria contínua da saúde infantil e da criança e emergência de novos problemas
É de realçar que, no difícil contexto laboral português, 50% das mães amamentam para lá do terceiro mês de vida.

Mantém-se a tendência decrescente da mortalidade infantil: 61% da mortalidade infantil ocorre no período neonatal (primeiros 27 dias de vida).

As doenças infecciosas diminuíram drasticamente na infância e nos primeiros 10 anos de vida.

Entre o 1 e os 4 anos de idade, começam a emergir as causas externas e os tumores malignos como causas significativas da mortalidade, sendo, no entanto, de assinalar o decréscimo observado na mortalidade associada às primeiras.



As causas externas envolvem questões sociais difíceis de prevenir entre as crianças e têm vindo a adquirir maior peso relativo na morbimortalidade reconhecida neste grupo etário.

Orientações estratégicas e intervenções necessárias


Melhorar a articulação entre serviços

Apoiar-se-ão as UCF, pilares da RRMI, para que assumam o seu papel fundamental na avaliação das necessidades, definição das prioridades locais e desenvolvimento de medidas concretas, que promovam a complementaridade dos serviços e a qualidade dos cuidados.

Reforçar-se-á a necessidade de a primeira consulta se realizar ainda nos primeiros dias de vida.

Generalizar-se-á o Projecto de Reestruturação das Urgências Pediátricas.



Promover a saúde infantil
Incentivar-se-á o aleitamento materno.

Desenvolver-se-ão intervenções intersectoriais para reduzir a morbilidade e mortalidade por acidentes.

As crianças portadoras de deficiência ou que estão em risco de atraso grave de desenvolvimento exigem uma atenção especializada que deve enquadrarse com o reforço da intervenção precoce e a implementação dos Centros de Desenvolvimento Infantil.

Settings prioritários

  • Os Settings a privilegiar nesta fase do ciclo de vida incluem a família, o infantário, as amas, o local de trabalho, as instituições de acolhimento e as unidades de saúde.

  1. Do período pós-neonatal aos 10 anos de idade.

  2. As UCF têm o objectivo de promover a articulação entre os dois níveis de prestação de cuidados, garantir a circulação recíproca de informação, avaliar as necessidades e prioridades de formação e intervenção em saúde materna, infantil e dos adolescentes, na sua área de influência, e propor medidas concretas de actuação para a resolução desses problemas (Despachos n.º 12917/98 e 6/91).



Uma juventude à descoberta de um futuro saudável 10

Situação actual

Aumento dos comportamentos de risco

Entre os jovens, verifica-se um aumento do sedentarismo, de desequilíbrios nutricionais, particularmente importante entre as raparigas, de condutas violentas, particularmente importante entre os rapazes, da morbilidade e mortalidade por acidentes, da maternidade e paternidade precoces, em particular, em adolescentes com menos de dezassete anos, e de comportamentos potencialmente adictivos, relacionados nomeadamente com o álcool, o tabaco e as drogas ilícitas.



Desconhecimento da morbilidade

De acordo com os indicadores tradicionalmente utilizados para monitorizar o estado de saúde, os adolescentes constituem o grupo etário mais saudável.

Esta afirmação é feita reconhecendo a limitação dos indicadores de que dispomos para medir a morbilidade associada a problemas como obesidade, bulimia, anorexia, saúde mental e IST (por exemplo, Chlamydia), entre outras.

Começam a assumir importância como causa de morbilidade as doenças do foro oncológico, a asma, a diabetes mellitus e outras formas de doença crónica ou de deficiência.



Persistência da mortalidade por causas externas e tumores malignos

Entre os jovens persistem como principais causas de morte as causas externas e os tumores malignos.

É de realçar o decréscimo observado na mortalidade associada a causas externas e a tumores malignos.

Começam a emergir as diferenças significativas entre as principais causas de morte para adolescentes do sexo masculino e feminino, particularmente no que se refere às causas externas.

Orientações estratégicas e intervenções necessárias


Aumentar a qualidade dos cuidados prestados aos jovens

Os adolescentes são grupos de intervenção prioritária, no âmbito da saúde reprodutiva e da prevenção de IST; serão, portanto, reforçadas as iniciativas no sentido de adequar e melhorar as condições de acesso e atendimento dos adolescentes, nos centros de saúde e nos hospitais11.



Há que persistir, também, no reforço das actividades de educação nas áreas da sexualidade e reprodução, baseadas nas escolas12,13 e com o apoio dos serviços de saúde.

Para reforçar uma abordagem global preventiva dos comportamentos de risco para a saúde dos jovens serão ampliadas as valências de atendimento dos Centros de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) e demais estruturas de prevenção do actual Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), de forma a incluir outras possíveis adicções e dependências, bem como outras perturbações comportamentais, sendo promovida a sua completa integração nas demais estruturas do SNS.

Serão estabelecidas parcerias com outras instituições e sectores, nomeadamente a educação, para uma abordagem integrada da saúde dos adolescentes, incluindo a possibilidade de se criarem Departamentos de Saúde no seio das próprias instituições de ensino, e do desenvolvimento de actividades de promoção da saúde e prestação de cuidados nos serviços oficiais de saúde.


Reforçar as actividades de redução de comportamentos de risco

Nesta fase do ciclo da vida, serão priorizadas intervenções a incentivar a adopção de estilos de vida e padrões de comportamento que condicionem favoravelmente a saúde futura14.



Settings prioritários

Como grande parte da vida do jovem se concretiza no espaço escolar e universitário, deve-se privilegiar o trabalho com as instituições do Ministério da Educação e do Ministério da Ciência e Ensino Superior.

Outros Settings a privilegiar nesta fase do ciclo de vida incluem a família, os locais de lazer, o local de trabalho e as unidades de saúde.

  1. Jovens dos 10 aos 24 anos.

  2. Portugal. Direcção-Geral da Saúde - Antes de engravidar vá ao médico. Lisboa: DGS, 1999; Portugal. Direcção-Geral da Saúde - Actividades de Planeamento Familiar: Avaliação do Cumprimento do Despacho n.º 12 782/98 (2.ª série), Actual DL n.º 259/2000 (policopiado), 2001; Portugal. Direcção-Geral da Saúde - Diagnóstico Pré-Natal: Actividades Realizadas nos Serviços de Saúde em 1998/1999 - Relatório, Lisboa: DGS, 2001; Portugal. Direcção-Geral da Saúde - Rede de Referenciação Materno-Infantil. Lisboa: DGS, 2001; Portugal. Direcção-Geral da Saúde - Saúde Reprodutiva: Planeamento Familiar. Lisboa: DGS, 2001.

  3. Portugal. Ministério da Educação e Ministério da Saúde. Educação Sexual em Meio Escolar - Linhas orientadoras, Lisboa, 2000.

  4. Apoio à organização de três seminários, realizados em 2001, sobre Educação Sexual em Meio Escolar, inseridos na estratégia de fomento e apoio às iniciativas sobre Educação Sexual no âmbito das Escolas Promotoras de Saúde.

  5. Portugal. DGS. Saúde dos Adolescentes - Princípios Orientadores. Lisboa: DGS, 1998.



Uma vida adulta produtiva 15

Situação actual

Problemas específicos das mulheres

Os problemas específicos das mulheres, nomeadamente os relativos à reprodução, menopausa e outros problemas que parecem afectar as mulheres de uma forma diferente, como as doenças do aparelho circulatório, a SIDA, perturbações nutricionais, a osteoporose, o cancro da mama, o abuso sexual, a violência doméstica e outras IST, não têm tido estas especificidades reconhecidas explicitamente nos diversos programas de acção.

Para as mulheres, são os tumores malignos a principal causa da mortalidade observada, que se mantém estável, seguida das causas externas, que mostram uma tendência decrescente.



Problemas de saúde que prevalecem nos homens

As causas externas permanecem a principal causa da mortalidade observada nos adultos do sexo masculino, no grupo etário dos 25 aos 44 anos, seguidas das doenças infecciosas e parasitárias, ambas reflectindo uma tendência para diminuir. De notar que nas doenças infecciosas e parasitárias se inclui a mortalidade por SIDA, que, em 2001, representava 85,5% da mortalidade observada por esta causa. Para o grupo etário dos 45-64 anos, a mortalidade entre os homens é também superior à verificada para as mulheres, apresentando uma tendência decrescente.



Riscos ocupacionais ignorados

Nesta fase do ciclo de vida, grande parte da vida activa é despendida em locais de trabalho, ignorando-se, no entanto, a dimensão dos riscos ocupacionais a que os trabalhadores estão expostos e a dimensão da morbilidade resultante.





Orientações estratégicas e intervenções necessárias

Investir na prevenção secundária

Deverão ser explicitadas nos programas e intervenções, particularmente ao nível dos cuidados de saúde primários e das acções dos serviços de saúde pública, especificidades na acção sensíveis às diferenças entre os géneros.

Dar-se-á prioridade à prevenção secundária da doença em termos de diagnóstico precoce, que se encontra subdesenvolvido.

Serão melhorados o acesso e a adequação das intervenções terapêuticas, que padecem de baixas taxas de compliance, resultando na baixa efectividade dessas mesmas intervenções.

Na promoção da saúde, merecerá prioridade a promoção de estilos de vida mais saudáveis nos cidadãos portadores de doença, campo de intervenção em que os profissionais de saúde têm demonstrado pouco empenho.





Settings prioritários

  • Os Settings a privilegiar nesta fase do ciclo de vida incluem a família, o local de trabalho e as unidades de saúde.

  1. Adultos dos 25 aos 64 anos.





Um envelhecimento activo 16

Situação actual
Cuidados inadequados às necessidades dos idosos

Não se faz, a nível dos cuidados de saúde primários, um rastreio suficiente dos factores de fragilidade nos idosos.

Os cuidados de saúde, a todos os níveis, não estão organizados de forma a darem melhor resposta a uma população cada vez mais envelhecida e são apoiados por pessoal com insuficiente formação específica (incluindo os prestadores formais e informais).

Regista-se também insuficiência na prestação dos cuidados aos idosos no domicílio e dificuldade na equidade de acesso aos serviços de saúde, o que leva a internamentos evitáveis ou em locais não adequados.

Verifica-se uma insuficiente articulação entre os múltiplos sectores implicados na prestação de cuidados aos idosos, tendo em conta que muitos determinantes estão fora do sector da saúde.

Insuficiente atenção aos determinantes da autonomia e da independência

Sai-se do mercado de trabalho sem planeamento de actividades alternativas e cai-se no isolamento físico e psicológico e na perda de relações sociais, surgindo a depressão e o suicídio.

Muitos idosos vivem "acamados" e "sentados" em cadeiras de rodas, quando poderiam ser autónomos.



A esperança de vida, sem incapacidade, acima dos 65 anos, é inferior à média estimada para os países da União Europeia, devendo-se, entre outros determinantes, à pouca prática de actividade física regular.

É indispensável uma maior atenção às particularidades em função do género (as mulheres vivem mais anos que os homens, mas o sexo feminino tem uma esperança de vida sem incapacidades bastante mais reduzida que o sexo masculino).

Está a aumentar a violência, o abuso e a negligência sobre os idosos.



Insuficiência de ambientes capacitadores de autonomia e independência

As pessoas com défices auditivos, visuais, etc., não têm ambientes acessíveis e estimulantes, registando-se, consequentemente, uma grande frequência de acidentes com idosos (quedas, traumatismos, atropelamentos).

Orientações estratégicas e intervenções necessárias


Adequar os cuidados de saúde às necessidades específicas dos idosos

Será implementado e avaliado o Programa Nacional para a Saúde das Pessoas Idosas.

Investir-se-á na identificação das dificuldades mais frequentes no acesso aos serviços e cuidados de saúde.



Investir-se-á na informação da população idosa sobre o modo de lidar com as situações de doença mais frequentes, medidas de prevenção de quedas e sobre o envelhecimento activo.

Investir-se-á na atenção especial às situações de maior vulnerabilidade, como a idade avançada, alterações sensoriais, AVC, doença crónica, depressão, isolamento, demência, desnutrição, escaras, risco de quedas, incontinência, polimedicação, hospitalização, etc.

Aumentar-se-á a cobertura da vacinação contra a gripe e dos cuidados de reabilitação.

Articular-se-ão os serviços de saúde com o sistema de cuidados continuados.



Actuar sobre determinantes de autonomia e independência

Identificar-se-ão os critérios de fragilidade da população idosa, através do Exame Periódico de Saúde (EPS).

Procurar-se-á a generalização e prática do conceito de envelhecimento activo (informar e encorajar para a prática de actividade física moderada regular, para a estimulação das funções cognitivas - memória -, para o incentivo de uma boa nutrição, bem como para a adopção de comportamentos saudáveis e para a vivência de uma reforma activa), tendo em conta as diferenças relativas à idade e ao género.



Promover e desenvolver, intersectorialmente, ambientes capacitadores de autonomia e independência dos idosos

Informar-se-á a população-alvo e orientar-se-ão tecnicamente os profissionais de saúde quanto à detecção e eliminação de barreiras arquitectónicas.

Capacitar-se-ão os profissionais de saúde para detectar e encaminhar, adequadamente, situações de violência, abuso ou negligência.

Recorrer-se-á cada vez mais a tecnologias e serviços favorecedores de apoio e de segurança (por exemplo, o serviço de telealarme).

Articular-se-ão melhor os cuidados de saúde com grupos de apoio da sociedade civil e com serviços prestados por outros ministérios.



Settings prioritários

  • Os Settings a privilegiar, nesta fase do ciclo de vida, incluem: a família, capacitando-a para a prestação de cuidados informais; os lares de idosos, capacitando-os para a manutenção da funcionalidade, autonomia e independência; os centros de saúde e hospitais, promovendo a identificação de critérios de fragilidade e de cuidados antecipatórios; as unidades de cuidados continuados, promovendo a prestação de cuidados curativos, paliativos, de reabilitação e de recuperação globais em internamento, em ambulatório e no domicílio.

  1. Idosos com 65 ou mais anos.





Morrer com dignidade

Situação actual
Deficiente acessibilidade a cuidados paliativos adequados

A quase inexistência de respostas organizadas no âmbito dos cuidados paliativos leva a que os doentes com doenças de evolução prolongada e grave ocupem, inadequadamente, camas hospitalares em serviços que não estão treinados nem vocacionados para a gestão do sofrimento, ou, então, se encontrem no domicílio, entregues apenas a cuidados de âmbito generalista e informais, que, apesar de importantes, não esgotam a sua necessidade de cuidados activos e intensos de conforto e bem-estar global.

Orientações estratégicas e intervenções necessárias


Organização dos cuidados paliativos

Planificar-se-ão e estabelecer-se-ão unidades de internamento e domiciliárias, estruturadas para a prestação de cuidados paliativos.

Elaborar-se-ão, em parceria com as sociedades científicas e com a sociedade civil, orientações que normalizem, nos serviços de saúde, a prestação de cuidados paliativos.



Formação em Cuidados Paliativos

Planificar-se-ão as necessidades em profissionais dedicados prioritariamente a intervenções de carácter paliativo, em particular no contexto da doença terminal. Essas necessidades deverão ser respondidas com programas específicos de formação a enquadrar no contexto do exercício da paliação (por ex., hospitais centrais, hospitais locais e centros de saúde).

Settings prioritários

  • Os Settings a privilegiar nesta fase do ciclo de vida incluem: a família, capacitando-as para a prestação de cuidados informais; os centros de saúde e hospitais, capacitando-os para a prestação de acções paliativas; as unidades de cuidados continuados, capacitando-as para a prestação de acções paliativas em internamento e no domicílio.





Como foram definidas as prioridades no P.N.S.?



Prioridade aos mais pobres



As últimas três décadas, em Portugal, foram de significativos ganhos em saúde. Mas também se acentuaram os problemas de saúde associados à pobreza e à exclusão social, sem ter havido, da parte do sistema de saúde, a agilidade necessária para se adaptar aos novos desafios que emergem. Este agravamento resulta, em parte, do aumento das desigualdades sociais, do envelhecimento da nossa população, da maior mobilidade das populações e de um número crescente de imigrantes.

Por conotação a uma maior falta de recursos e condições de vida mais difíceis, a pobreza e a exclusão social estão também associadas a uma maior prevalência de estilos de vida menos saudáveis, com um acesso mais difícil a cuidados de saúde e a medicamentos. Por outro lado, estes problemas relacionados com a saúde tendem a agravar situações socioeconómicas de carência, acentuando a pobreza e a exclusão social. O resultado é uma dimensão mais gravosa de problemas de saúde cronicodegenerativos nas populações mais pobres, a reemergência de problemas de saúde como a tuberculose, os problemas associados aos comportamentos aditivos, a violência e a persistência da SIDA, para mencionar só alguns dos problemas com maior impacto na pobreza.

Existem evidências significativas, noutros países da UE, de que algumas estratégias são eficazes. A serem adoptadas pelo Ministério da Saúde, poderiam vir a ter um impacto significativo na redução das desigualdades em saúde e na diminuição do peso das doenças associadas à pobreza e à exclusão social42.

Destas estratégias, realça-se, primeiro, uma abordagem territorial, que complementaria a abordagem por settings, contemplada mais adiante neste Plano. Ela poderia ter um impacto significativo na melhoria do acesso aos serviços de saúde das populações desfavorecidas e concentradas territorialmente.

Segundo, o reconhecimento de que o trabalho a ser contemplado deve ser coordenado e promovido pelo Ministério da Saúde e suas instituições, mas que, na prática, requer a colaboração de muitos outros sectores da sociedade. Os dirigentes do Ministério da Saúde terão, pois, de assumir um papel activo de advocacia de políticas, não só saudáveis, mas que discriminem positivamente os mais desfavorecidos.



Abordagem programática do P.N.S.

As Orientações Estratégicas da Saúde estão essencialmente centradas em planos, programas e projectos já existentes, eventualmente a rever, mas com abertura para novos programas nacionais que venham a mostrar-se necessários.

Devido, por um lado, ao risco associado e ao peso da doença e, por outro, à existência de intervenções de elevado rácio de custo-efectividade e à disponibilidade de recursos, tem-se feito um grande esforço no sentido de desenvolver Programas Nacionais de Intervenção para, de uma forma horizontal, serem executados por todos os intervenientes no sistema de saúde, incluindo os cidadãos.

Continuar-se-á a apostar nesta abordagem, tentando identificar a necessidade de:

  • uma melhor coordenação entre programas, quando existam problemáticas comuns a vários (como, por exemplo, no que diz respeito aos estilos de vida pouco saudáveis que estão associados às doenças cardiovasculares, à diabetes, à obesidade e a alguns cancros);

  • combinar programas diversos já existentes como subprogramas de um programa global e abrangente;

  • modelar os programas numa lógica de gestão integrada da doença;

  • definir, quando se revele apropriado, metas smart43;

  • investir em sistemas de informação, para melhor monitorizar os programas, de forma a poder introduzir, a todo o momento, eventuais correcções.

Uma meta smart é específica, mensurável, alcançável, realista e temporalmente limitada.



Abordagem com base em settings

É na escola, no local de trabalho e nos locais de lazer que é despendido grande parte do tempo útil de um dia normal. Estes locais, entre outros, proporcionam ambientes integradores de uma multiplicidade de intervenções de carácter diverso. Para fortalecer esta abordagem, que implica trabalho de colaboração com outros ministérios, será seguido o modelo em que um coordenador dos programas nos settings identificados será nomeado por um despacho conjunto entre a Saúde e as entidades responsáveis:

  • Ministério do Trabalho, para os locais de trabalho;

  • Secretaria de Estado do Desporto, para os espaços desportivos;

  • Secretaria de Estado da Juventude, para os locais de lazer e de divertimento público;

  • Ministério da Justiça, para as prisões;

  • Ministério da Educação, para jardins-de-infância, escolas do ensino básico e secundário e outras instituições de ensino não superior.

As escolas, o local de trabalho e as prisões, por causa do seu carácter especial, requerem uma particular atenção.



As escolas

A escola desempenha um papel primordial no processo de aquisição de estilos de vida, que a intervenção da saúde escolar, dirigida ao grupo específico das crianças e dos jovens escolarizados, pode favorecer, ao mesmo tempo que complementa a prestação de cuidados personalizados.

No ano lectivo 2002/03, dos 357 Centros de Saúde existentes em Portugal, 96% fizeram Saúde Escolar. Esta actividade foi desenvolvida em 4 398 (89%) jardins-de-infância, 8 265 (89%) escolas do ensino básico e secundário e 41 (36%) escolas profissionais.

Apesar da boa cobertura das escolas, dos alunos, dos professores e dos auxiliares de acção educativa pelo Programa de Saúde Escolar44, a execução de algumas actividades, nomeadamente, a monitorização do estado de saúde dos alunos, não obstante a melhoria nos últimos anos, é ainda baixa, quer aos 6 (71%), quer aos 13 anos (34%). Dos alunos com necessidades de saúde especiais, detectadas na escola (24 965), pouco mais de 50% (13 160) teve o seu problema de saúde resolvido no final do ano lectivo. A avaliação das condições de segurança, higiene e saúde das escolas é o contributo da saúde para o diagnóstico dos riscos, no ambiente escolar, apontando a avaliação do ano lectivo 2002/03, realizada em 5 341 escolas das 8 265 que têm saúde escolar, para a existência de boas condições de segurança e higiene do meio ambiente em, respectivamente, 64% e 81% das escolas e boas condições de segurança e higiene dos edifícios e recintos em 18% e 28% das escolas, também respectivamente.



O apoio ao desenvolvimento curricular da promoção e educação para a saúde, pelas equipas de saúde escolar, cobre áreas tão diversas como a educação alimentar, vida activa saudável, prevenção da violência, educação para a cidadania e educação sexual e afectiva, SIDA, consumos nocivos, com destaque para o consumo excessivo de álcool, tabaco e drogas, nos diferentes níveis de ensino. No entanto, não existem para todas estas áreas orientações técnicas que guiem a intervenção.

Com uma metodologia de projecto que assenta no diagnóstico das necessidades e com uma estratégia de construção de parcerias, criando ou reforçando redes sociais de integração da escola na comunidade, a Rede Nacional de Escolas Promotoras da Saúde (RNEPS)45 abrangeu, no ano lectivo 2000/2001, um terço da população escolarizada do ensino público, do pré-escolar ao secundário, o que corresponde a 3 722 escolas e 282 centros de saúde (80% do total de centros de saúde). A RNEPS integra-se na Rede Europeia das Escolas Promotoras de Saúde, um projecto conjunto da OMS, Conselho da Europa e Comissão Europeia.

A estratégia de intervenção em saúde escolar, no âmbito da promoção da saúde e prevenção da doença, assentará em actividades que serão executadas de forma regular e contínua ao longo de todo o ano lectivo: a vigilância do cumprimento dos exames de saúde, do Plano Nacional de Vacinação (PNV) e da legislação sobre evicção escolar, a agilização dos encaminhamentos, através de protocolos ou parcerias, dentro e fora do SNS, para a melhoria das respostas às crianças com necessidades de saúde especiais, a promoção da saúde oral e o incentivo de estilos de vida saudáveis.



Com os outros sectores da comunidade, nomeadamente com as autarquias, será reforçada a articulação para a melhoria das condições do ambiente dos estabelecimentos de educação e ensino.



As estratégias da OMS, Health for All in the 21st century46, apontam para que, no ano 2015, pelo menos 50% das crianças que frequentam o jardim-de-infância e 95% das que frequentam a escolaridade obrigatória e o ensino secundário terão oportunidade de ser educadas em escolas promotoras de saúde. Uma escola promotora de saúde é a que garante a todas as crianças e jovens que a frequentam a oportunidade de adquirirem competências pessoais e sociais que os habilitem a melhorar a gestão da sua saúde e a agir sobre os factores que a influenciam. Para isso, são indispensáveis parcerias, procedimentos democráticos, metodologias participativas e desenvolvimento sustentado.



(Quadro I, na pag. Seguinte).



Quadro I - Metas para a saúde escolar

Indicador

Situação
actual

Meta para
2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de CS com Equipas de Saúde Escolar

96

100

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de cobertura da monitorização do estado de saúde dos alunos aos 6 anos

71

90

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de cobertura da monitorização do estado de saúde dos alunos aos 13 anos

31

75

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de alunos com PNV actualizado na pré-escola

82

95

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de alunos com PNV actualizado aos 6 anos

90

99

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de alunos com PNV actualizado aos 13 anos

78

95

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de alunos com necessidades de saúde especiais passíveis de resolução, que têm, no final do ano lectivo, o seu problema de saúde resolvido

53

75

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de escolas com avaliação das condições de segurança, higiene e saúde das escolas

65

100

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de escolas com boas condições de segurança e higiene do meio ambiente

64

90

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de escolas com boas condições de segurança e higiene dos edifícios e recintos

18

60

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de intervenções de promoção da saúde em saúde escolar com orientações técnicas definidas

20

100

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de crianças com 6 anos livres de cáries

33

65

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Índice de CPOD (dentes cariados, perdidos e obturados na dentição permanente) aos 12 anos

2.95

1.90

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de jovens necessitados de tratamento com dentes tratados aos 12 anos

18

60

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: DGS, DSE - Ano Lectivo 2002/2003.


Circular Normativa n.º 13/DSE, de 10/08/95 - Programa Tipo de Saúde Escolar.

Despacho Conjunto n.º 734/2000, de 18 de Julho, subscrito pelos Ministros da Saúde e da Educação - estabelece normas sobre o processo de alargamento da Rede Nacional de Escolas Promotoras da Saúde.

World Health Organization - Health 21: Health for All in the 21st century. Copenhagen: WHO, Regional Office for Europe, 1999.

O local de trabalho

Talvez o aspecto mais importante no domínio da necessidade de intervenção no local de trabalho se situe na melhoria da informação e dos conhecimentos em matéria de saúde ocupacional. Essa informação seria destinada ao grande público, aos profissionais de saúde e às autoridades responsáveis pela saúde. É pois fundamental a organização conjunta com os parceiros intervenientes de um Observatório de Doenças Profissionais.

Um aspecto importante no domínio das necessidades de intervenção no local de trabalho situa-se no desenvolvimento de um Programa Nacional de Promoção e Protecção da Saúde nos Locais de Trabalho, assente em cinco eixos estratégicos estruturantes da intervenção e que consubstancie os princípios estipulados no Plano Nacional de Acção para a Prevenção, resultante do acordo sobre condições de trabalho, higiene e segurança no trabalho e combate à sinistralidade, estabelecido pelo Concelho Económico e Social de 2001.

Apoiar-se-á o envolvimento, de forma mais activa, dos serviços de saúde, em particular dos Centros Regionais de Saúde Pública, no apoio e incentivo às empresas das respectivas regiões, não só para que cumpram os requisitos legais em matéria de higiene, saúde e segurança, mas também para que contribuam para que os trabalhadores adoptem estilos de vida mais saudáveis.

Assegurar-se-á ainda que os serviços de saúde, públicos e privados, incluindo institutos e serviços centrais, organizem os Serviços de Saúde, Higiene e Segurança no Trabalho (SHST)47 de forma a incentivar o cumprimento, por parte destas instituições e serviços, das normas legais sobre higiene, segurança e saúde no trabalho, garantindo a avaliação e registo actualizado dos factores de risco e a planificação das acções conducentes ao seu efectivo controlo, bem como a existência de recursos humanos com competência e qualificação adequadas.

Desta forma, todos os serviços dependentes do Ministério da Saúde, especialmente as unidades prestadoras de cuidados, deverão ter organizados os Serviços de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho48 de forma a constituir uma mais valia em termos de saúde e segurança para os seus próprios trabalhadores, para a comunidade em que se encontram inseridos, apoiando e disponibilizando serviços a trabalhadores de outros sectores e, ainda, promovendo a investigação científica e a formação de técnicos através da criação de centros específicos.



Decreto-Lei n.º 109/2000, de 30 de Junho - Define o regime jurídico de SHST.

Decreto-Lei n.º 488/99, de 17 de Novembro - Define as formas de aplicação do regime jurídico de SHST à Administração Pública.





As prisões

Portugal apresenta hoje a mais elevada taxa de população reclusa da Europa Ocidental, tendo, em 1 de Outubro de 2002, um total de 14 126 reclusos, com uma taxa de ocupação de 121,6%. O estado de saúde destes reclusos está mal caracterizado. Mas a toxicodependência é o primeiro problema de saúde desta população (65,4% dos reclusos são ou foram consumidores de drogas).

As queixas atribuídas a aspectos de saúde mental constituem o outro problema de saúde de maior dimensão. A saúde mental desta população é precária e a solução encontrada para lhe fazer face, maioritariamente por médicos de família, é o uso de psicotrópicos. Estas drogas são as mais receitadas, sendo consideráveis os seus custos. Há sempre cerca de 5 a 10 mortes/ano por suicídio ou overdose nas cadeias portuguesas. Dezasseis por cento da população reclusa tem SIDA ou é seropositiva; quanto às hepatites, 26,9% dos reclusos têm resultados positivos na análise da hepatite C e 9,7% têm-no relativamente à hepatite B. A incidência da tuberculose é cerca de 13 vezes superior à da população não reclusa, sendo a multirresistência um problema particularmente preocupante. As necessidades de saúde oral insatisfeitas são também um problema de saúde que parece abranger a maioria dos reclusos.

Os problemas de saúde dos trabalhadores prisionais também deverão ser contemplados num futuro programa de acção. Existem protocolos entre os estabelecimentos prisionais/Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (EP/DGSP) e as ARS, sub-regiões de saúde ou centros de saúde49, nos quais são determinadas as condições em que a assistência médica e medicamentosa tem lugar, face às características próprias dos estabelecimentos prisionais, sua população e necessidades específicas50 de Saúde e de Justiça, sendo necessária uma avaliação regional e nacional das acções realizadas e em curso, tendo em vista o cumprimento da Lei n.º 170/99, de 18 de Setembro.

Serão reforçadas intervenções específicas e articuladas da DGS, do IDT e das ARS, relacionadas com a organização de respostas para o combate ao consumo de drogas51 e, no âmbito da reabilitação, com o desenvolvimento do tratamento de toxicodependentes em estabelecimentos prisionais, assim como a promoção da reinserção social dos toxicodependentes reclusos através de casas de saída52. A realização de acções de promoção de saúde mental e de estilos de vida saudáveis em meio prisional, dirigidas tanto aos profissionais quanto aos reclusos, será priorizada.

Dar-se-á também prioridade à execução de protocolos para vacinação do pessoal prisional e dos detidos contra as doenças infecciosas, nomeadamente a hepatite B53, assim como a intervenções específicas da DGS e ARS relacionadas com o VIH e outras doenças infecciosas. Em relação à tuberculose, terão primazia as actividades de rastreio, diagnóstico, tratamento e prevenção da transmissão da tuberculose54.





(Quadro II, na pag. Seguinte)



Quadro II - Metas para a saúde da população prisional

Indicador

Situação
actual

Meta para
2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de cobertura vacinal do pessoal prisional

Desconhecida

100

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

% de cobertura vacinal dos detidos

Desconhecida

100

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Promoção da saúde mental em ambiente prisional

Não existe

Em funcionamento, de forma a cobrir
50% da população prisional

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Até Fevereiro de 2002, tinham sido assinados 38 destes protocolos de colaboração.

  1. Protocolo de 21/03/97, dos Ministros da Justiça e da Saúde.

  2. Presidência do Conselho de Ministros - ‘Redução de Riscos e Minimização de Danos'. In Plano de Acção Nacional de Luta Contra a Droga e Toxicodependência - Horizonte 2004. Lisboa: IPDT, 2001.

  3. Presidência do Conselho de Ministros - ‘Reinserção Social dos Toxicodependentes', In Plano de Acção Nacional de Luta Contra a Droga e Toxicodependência - Horizonte 2004. Lisboa: IPDT, 2001.

  4. Protocolo de 21/03/97, dos Ministros da Justiça e da Saúde.

  5. Protocolo de 24/03/98, entre DGSP e DGS.



Análise crítica ao P.N.S.

Em primeiro lugar, não temos dúvidas sobre o mérito da sua conceptualidade e das orientações que estabelece, mas, a sua passagem à prática, tem vindo a revelar que, tal qual sucede com a própria existência do Ser Humano, não existe Ciência sem Cultura e/ou História, nem existe Cultura e/ou História sem Ciência.

Procuremos então traçar um perfil epistomológico sobre as Ciências da Vida e da Saúde.

Durante as pesquisas documentais a que procedemos, deparamo-nos com uma trabalho muito interessante da autoria da Doutora Márcia Regina Pfuetzenreiter, da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), publicado na Episteme, Porto Alegre, n. 16, p. 111-135, jan./jun. 2003, sob o título:

EPISTEMOLOGIA DE LUDWIK FLECK COMO REFERENCIAL PARA A PESQUISA NAS CIÊNCIAS APLICADAS

Permitimo-nos extrair alguns conceitos do referido trabalho e elaborar os referenciais sobre os quais o P.N.S. assenta.

Fleck, defende que há uma conexão entre o estilo de pensamento de uma época e os conceitos que são considerados pertinentes para a mesma época.

Haveria, portanto, um condicionamento histórico-cultural caracterizado por uma certa regularidade histórica no desenvolvimento do pensamento.

Ele refere-se à epistemologia comparada, que permite relacionar as ideias actuais às do passado, traçando linhas de conexão entre ambas para compreensão do estágio actual do conhecimento. Todavia, para explicar a existência de uma enfermidade, devem ser levadas em consideração, além das relações históricas, as conexões sócio-cognoscitivas que influenciarem o seu conceito.

Muitos factos científicos encontram-se vinculados a ideias inicias ainda mal delineadas, chamadas de proto-ideias ou pré-ideias. O autor deixa claro que nem sempre os factos científicos emergem destas proto-ideias, podendo, muitas vezes, não serem encontradas relações históricas entre ideias antigas e modernas. Haveria duas fases no desenvolvimento das ideias:

A primeira, seria a fase de classicismo em que todos os factos concordam e se adaptam perfeitamente à teoria.

Em seguida, alguns factos começam a não se encaixar tão bem. Aqui são caracterizadas as excepções que se vão tornando cada vez mais frequentes. As observações que contradizem uma teoria são explicadas e reinterpretadas para se conciliarem com o conhecimento novo. Fleck conclui que a persistência dos sistemas de ideias é uma estrutura determinada por um estilo de pensamento.

Como podemos observar, já uma tese médica epistomológica de 1935 nos vinha chamar a atenção para o facto de que, o raciocínio do processo investigativo, poder estar sujeito a distorções, por vezes, de conveniência.

Como disse João Cravinho, ex-ministro de um Governo de Portugal, a propósito de demonstrações estatísticas orçamentais, "os números, depois de devidamente torturados, acabam sempre por dizer o que desejamos".

Mas não são apenas os números. As intenções, também!

Se compararmos o espírito e o conteúdo objectivo de tudo quanto ficou exarado e aprovado no Plano Nacional de Saúde 2004-2010, com a realidade com a qual temos sido confrontados até 2008, teremos de aceitar tudo quanto escrevemos no CAPÍTULO I.

No que concerne ao tema do capítulo presente, Educação para a Saúde, teremos de reflectir sobre o que nos apresenta o P.N.S. sobre:

As escolas

A escola desempenha um papel primordial no processo de aquisição de estilos de vida, que a intervenção da saúde escolar, dirigida ao grupo específico das crianças e dos jovens escolarizados, pode favorecer, ao mesmo tempo que complementa a prestação de cuidados personalizados.

No ano lectivo 2002/03, dos 357 Centros de Saúde existentes em Portugal, 96% fizeram Saúde Escolar. Esta actividade foi desenvolvida em 4 398 (89%) jardins-de-infância, 8 265 (89%) escolas do ensino básico e secundário e 41 (36%) escolas profissionais.

Apesar da boa cobertura das escolas, dos alunos, dos professores e dos auxiliares de acção educativa pelo Programa de Saúde Escolar44, a execução de algumas actividades, nomeadamente, a monitorização do estado de saúde dos alunos, não obstante a melhoria nos últimos anos, é ainda baixa, quer aos 6 (71%), quer aos 13 anos (34%). Dos alunos com necessidades de saúde especiais, detectadas na escola (24 965), pouco mais de 50% (13 160) teve o seu problema de saúde resolvido no final do ano lectivo. A avaliação das condições de segurança, higiene e saúde das escolas é o contributo da saúde para o diagnóstico dos riscos, no ambiente escolar, apontando a avaliação do ano lectivo 2002/03, realizada em 5 341 escolas das 8 265 que têm saúde escolar, para a existência de boas condições de segurança e higiene do meio ambiente em, respectivamente, 64% e 81% das escolas e boas condições de segurança e higiene dos edifícios e recintos em 18% e 28% das escolas, também respectivamente.

O apoio ao desenvolvimento curricular da promoção e educação para a saúde, pelas equipas de saúde escolar, cobre áreas tão diversas como a educação alimentar, vida activa saudável, prevenção da violência, educação para a cidadania e educação sexual e afectiva, SIDA, consumos nocivos, com destaque para o consumo excessivo de álcool, tabaco e drogas, nos diferentes níveis de ensino. No entanto, não existem para todas estas áreas orientações técnicas que guiem a intervenção.

Com uma metodologia de projecto que assenta no diagnóstico das necessidades e com uma estratégia de construção de parcerias, criando ou reforçando redes sociais de integração da escola na comunidade, a Rede Nacional de Escolas Promotoras da Saúde (RNEPS)45 abrangeu, no ano lectivo 2000/2001, um terço da população escolarizada do ensino público, do pré-escolar ao secundário, o que corresponde a 3 722 escolas e 282 centros de saúde (80% do total de centros de saúde). A RNEPS integra-se na Rede Europeia das Escolas Promotoras de Saúde, um projecto conjunto da OMS, Conselho da Europa e Comissão Europeia.

A estratégia de intervenção em saúde escolar, no âmbito da promoção da saúde e prevenção da doença, assentará em actividades que serão executadas de forma regular e contínua ao longo de todo o ano lectivo: a vigilância do cumprimento dos exames de saúde, do Plano Nacional de Vacinação (PNV) e da legislação sobre evicção escolar, a agilização dos encaminhamentos, através de protocolos ou parcerias, dentro e fora do SNS, para a melhoria das respostas às crianças com necessidades de saúde especiais, a promoção da saúde oral e o incentivo de estilos de vida saudáveis.

Com os outros sectores da comunidade, nomeadamente com as autarquias, será reforçada a articulação para a melhoria das condições do ambiente dos estabelecimentos de educação e ensino.

As estratégias da OMS, Health for All in the 21st century46, apontam para que, no ano 2015, pelo menos 50% das crianças que frequentam o jardim-de-infância e 95% das que frequentam a escolaridade obrigatória e o ensino secundário terão oportunidade de ser educadas em escolas promotoras de saúde. Uma escola promotora de saúde é a que garante a todas as crianças e jovens que a frequentam a oportunidade de adquirirem competências pessoais e sociais que os habilitem a melhorar a gestão da sua saúde e a agir sobre os factores que a influenciam. Para isso, são indispensáveis parcerias, procedimentos democráticos, metodologias participativas e desenvolvimento sustentado.

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No entanto, ao analisarmos os factos reais, os números apresentados pelas escolas, estão muito distantes dos apresentados no P.N.S..

Em primeiro lugar, porque os ensinamentos sobre Saúde têm vindo a ser transmitidos pelos professores de diversas disciplinas, e não por profissionais de Saúde.



Em segundo lugar, porque a Saúde, no seu amplo e pleno conceito, não são apenas e unicamente um conjunto de preceitos de higiene pessoal, de comportamentos e modos de vida individuais. É um conceito muito mais vasto.

Vejamos o que dissemos na página 10:

Numa abordagem globalizante, integrativa e objectiva, poderemos afirmar que o estado de Saúde do Ser Humano, é uma questão de equilíbrio e intercomplementaridade de diversos factores que, no seu conjunto, poderemos apelidar de Higiene Global ou Holística:

  •  
    1. Higiene pessoal;

    2. Higiene familiar;

    3. Higiene laboral;

    4. Higiene social;

    5. Higiene ambiental.

Qualquer desequilíbrio significativo num único destes cinco factores referidos, irá desencadear, inevitavelmente, "efeitos secundários" em todos os outros.

Nessa situação, a maior ou menor capacidade reactiva aos referidos "efeitos secundários" dependerá exclusivamente das capacidades inatas psico-neuro-endócrino-imuno-fisiológicas do indivíduo afectado.

Seja como for, perante todas estas evidências, SAÚDE acaba por ser o resultado do complexo cruzamento e equilíbrio de diversas variáveis, a maioria das quais não estão dependentes dos chamados Serviços de Saúde Pública.

Onde queremos chegar com esta afirmação?

Que não chegará produzir informação para a criança, se não existir um acautelamento complementar junto da família onde a criança está inserida, se essa família não estiver em condições ditas funcionais.

Regra geral, o comportamento de uma criança, seja em que contexto for, é a consequência do "meio" na qual ela está inserida. È um sinal ou um sintoma!

Ora, como qualquer Profissional de Saúde deve saber, só em casos muito graves deveremos tratar os sintomas antes de definir a "doença" que está na origem dos mesmos.

Que resultados poderemos obter, numa criança dita normal, se ela estiver inserida numa família onde não haja estabilidade (familiar; económica; laboral; sanitária; ambiental)?



Desde já, e para memória futura, queremos deixar bem expresso de que o nosso trabalho não se subordina a qualquer conceito político-partidário ou a qualquer corrente ideológica. É absolutamente objectivo!



Queremos afirmar com esta declaração de que, à semelhança do que se passa no organismo humano, acreditamos numa das conclusões que nos deixou Claude Bérnard, médico e fisiologista francês (12 de Julho de 1813 - 10 de Fevereiro de 1878):

- O micróbio é o menos importante. O problema está no meio.



Continuando o nosso trabalho de crítica comparativa entre a Sociedade e o Ser Humano, que mais não é do que uma sociedade complexa de células muito diferenciadas, organizadas em tecidos e órgãos específicos, interdependentes e intercomplentares nas suas funções, no sentido único de manterem as condições vitais de equilíbrio (homeostase), parece-nos ser uma boa ideia procedermos a esta analogia. A Mãe Natureza mostra-nos os caminhos e, muito provavelmente, as melhores soluções!

Relembremos o que escrevemos na página 12:

Seja como for, perante todas estas evidências, SAÚDE acaba por ser o resultado do complexo cruzamento e equilíbrio de diversas variáveis, a maioria das quais não estão dependentes dos chamados Serviços de Saúde Pública.

Não temos dúvidas acerca das intenções exaradas no P.N.S., no entanto, o mesmo não se passa acerca dos mecanismos institucionais que estão nele previstos para as levar à prática.

Interroguemo-nos:

  1. Será que foram estabelecidos os mais eficazes canais de contacto e informação entre os diversos Ministérios previstos no P.N.S.?

  2. Será que existe uma base de dados que permita o cruzamento e tratamento dos dados obtidos pelos referidos Ministérios?

Se formos confrontados com respostas negativas a ambas as interrogações, o Plano Nacional de Saúde 2004 - 2010, jamais passará de um mero documento de boas intenções.

Que nos seja permitido, aqui e agora, citar um velho ditado popular:

- De boas intenções, está o Inferno cheio!



Haverá, portanto, que proceder à elaboração de propostas que conformem uma maior viabilidade aos pressupostos definidos no P.N.S..

A partir da página seguinte, passaremos a apresentar as nossas propostas que também têm a sua sustentabilidade assente sobre alguns dos princípios que aparecerão no CAPÍTULO III.

Propostas para uma melhor funcionalidade do P.N.S.

Para que o funcionamento do estabelecido no Plano Nacional de Saúde - 2004/2010 (P.N.S.), seria necessário criarem-se algumas estruturas não previstas no mesmo.

No sentido de se acautelarem os meios operacionais necessários, proporíamos:

  1. Criação de um Departamento Operacional junto ao Ministro de Estado da Presidência do Conselho de Ministros (que o coordenaria), constituído por um elemento de cada um dos Ministérios aos quais cabem funções atribuídas pelo P.N.S., nomeadamente:

    • Ministério da Saúde;

    • Ministério do Trabalho e Segurança Social;

    • Ministério da Educação;

    • Ministério da Justiça.

  2. Em cada Autarquia (Câmara Municipal), deverá existir uma estrutura que manterá actualizada uma base de dados a partir das Escolas (alunos), assim como, para cada aluno, os dados sobre a estrutura familiar cuidadora (situação laboral e meio de inserção), e a situação de todo o agregado nas estruturas locais do Sistema Nacional de Saúde.

A esta estrutura autárquica caberá a comunicação permanente e actualizada dos dados recolhidos na sua área, ao Departamento Operacional.



  1. Em cada Estabelecimento de Ensino (Básico e Secundário) ou grupo de Estabelecimentos de Ensino, deverá existir uma Psicóloga Escolar que, em estreita colaboração com os Professores e o pessoal auxiliar, deverá manter um dossier individual de cada aluno, com todos os dados necessários, que fornecerá à estrutura autárquica.

  2. Cada estrutura local do Serviço Nacional de Saúde deverá estar organicamente estruturada para cobrir os Estabelecimentos de Ensino da sua área de acção, de forma a que, para além de prestar todos os serviços normais de Saúde Pública em estreita colaboração com a Psicóloga Escolar, poder proceder a formação e informação no interior dos referidos Estabelecimentos de Ensino, tanto a alunos, como a pessoal docente e auxiliar, incluindo a família sempre que possível. Os dados recolhidos deverão ser transmitidos à estrutura autárquica.

  3. A estrutura local do Ministério do Trabalho e Segurança Social, deverá ser reforçada com Assistentes Sociais em número suficiente para estudar e dar a cobertura adequada em visitas domiciliares, com especial incidência aos casos considerados de emergência social detectados, quer pela Psicóloga Escolar, quer pelos Serviços de Saúde. Os dados recolhidos deverão ser transmitidos à estrutura autárquica.



Embora de uma forma bastante sucinta, estamos em crer que uma estrutura

deste tipo, se devidamente treinada, poderá contribuir para um bom desempenho dos mecanismos previstos no P.N.S., para além de poder ser um meio expedito e eficaz para que o Governo, a nível central, possua uma ferramenta de análise muito fina do tecido social, permitindo-lhe uma avaliação rápida dos problemas e estudar soluções atempadas para os mesmos.

 

CAPÍTULO III

Refundação das metodologias do Ensino em Saúde, Refundação das metodologias de tratamento da Doença, e Adaptação dos Sistemas de Saúde Pública às realidades sociais.



Introdução

Iniciaremos este Capítulo com um trabalho publicado no Brasil e que reflecte a realidade a que queremos chegar.

A respeito do conceito de totalidade, a homeopatia, bem como outras medicinas alternativas ou complementares, tem, como seu paradigma epistemológico e de prática terapêutica, a vida, a saúde e o equilíbrio. A centralidade dessas categorias está presente nas dimensões da terapêutica, da diagnose, da doutrina médica, da dinâmica vital e da própria morfologia humana. É uma racionalidade médica que adopta o vitalismo na abordagem dos processos de adoecimento e cura dos sujeitos, estabelecendo ou restabelecendo para a medicina o papel de promotora e recuperadora da saúde e de auxiliar de vida, acompanhando o discurso actual da promoção de saúde, associado à qualidade de vida, saúde, solidariedade, equidade, democracia, cidadania, desenvolvimento, entre outros (Luz, 2005; Buss, 2003).

As dificuldades em relação à acessibilidade, especialmente em relação à marcação de consultas, sobretudo da primeira, prevaleceram como aspecto negativo do serviço. Segundo Acúrcio e Guimarães (1996), acessibilidade seria a capacidade de obtenção de cuidados em saúde, quando necessário, de modo fácil e conveniente. O conceito de acesso está relacionado a três subcategorias denominadas: acesso geográfico, acesso económico e acesso funcional (Ramos, Lima, 2003; Unglert, 1994). O acesso geográfico foi caracterizado por forma e tempo de deslocamento e distância entre a residência do usuário e o serviço de saúde. O acesso económico, pelas facilidades e dificuldades que o usuário encontra para obter o atendimento, considerando que a totalidade dos serviços de saúde não está disponível a todos os cidadãos. O acesso funcional envolveria a entrada propriamente dita aos serviços de que o usuário necessita, incluindo-se os tipos de serviços oferecidos, os horários previstos e a qualidade do atendimento. No caso do CS Modelo, a marcação da primeira consulta está vinculada à Central de Marcação de Porto Alegre, e as consultas seguintes são remarcadas na unidade em dia do mês previamente estabelecido, gerando filas e longo tempo de espera.

A disponibilização de medicamentos de forma gratuita nas unidades do SUS foi considerada, pelos usuários entrevistados, componente importante de um atendimento integral à saúde. Em sua fala, a falta de medicamentos nas unidades é um aspecto negativo dos serviços públicos e foi referida como ponto positivo no serviço de atendimento homeopático - faz parte da unidade uma farmácia de manipulação que disponibiliza os medicamentos gratuitamente.

Um dos aspectos abordados pelos trabalhadores, quando indagados sobre a integralidade no atendimento, referiu-se às próprias condições de trabalho consideradas ruins. Deram, como exemplo, os prontuários do serviço que se encontram dispostos em arquivos pesados, dificultando o manuseio e ocasionando tendinites e outras doenças músculo-esqueléticas e o afastamento do trabalho.

Já no entendimento do gestor da unidade, os hospitais, por suas características e modo de funcionamento, são mais apropriados e aproximam-se mais do modelo de integralidade da atenção em saúde, pois faz parte da rotina hospitalar o trabalho interdisciplinar de equipe multi-profissional que actua em torno de um caso clínico. Para ele, os médicos em geral possuem uma tendência a trabalharem isolados, sem comunicação entre si e os demais profissionais e sectores, costumando resistir à unificação dos prontuários clínicos e troca de saberes.

(Entrevistado 10): O que é integralidade no atendimento? É uma pergunta difícil, porque nós médicos temos uma tendência a trabalharmos meio isolados; essa integralidade, pelo menos no posto de saúde, eu vejo ela muito difícil, eu até entendo ela no hospital.

Observa-se que o gestor aponta uma característica inerente à prática médica em ambientes não hospitalares, que seria a questão do isolamento e da dificuldade em estabelecer relações de troca, colocando naturalmente em foco a necessidade de discussão da graduação médica e de se repensar os cursos de formação e capacitação destes profissionais. Por outro lado, parece haver certa idealização do espaço hospitalar, ficando o tema da integralidade muitas vezes restrito à concepção de trabalho interdisciplinar e multi-profissional em torno da doença, desconsiderando a possibilidade desta dinâmica de trabalho multi-profissional e interdisciplinar em outros ambientes de atenção à saúde e, também, a importância de outras formas de cuidado e de reestruturação de processos de trabalho que possam contribuir para a integralidade da atenção, tais como: o acolhimento, a criação de redes matriciais, a implementação de formas de gestão participativa e outras estratégias de organização das práticas e do próprio sistema de saúde (Pinheiro, Luz, 2003; Campos, 1997; Mehry, 1997).

Pinheiro e Luz (2003) afirmam que as instituições de saúde assumem papel estratégico na absorção dos conhecimentos de novas formas de agir e produzir integralidade em saúde, na medida em que reúnem, no mesmo espaço, médicos, usuários e gestores com perspectivas diferentes e interesses distintos. O que se percebe no CS Modelo é que o mesmo reúne práticas de saúde com saberes diferenciados, mas que funcionam de maneira isolada, não interagindo entre si. Do mesmo modo, na unidade, não existem espaços colectivos que propiciem a interlocução entre os atores no quotidiano destas práticas. Esta questão foi apontada por uma das médicas, quando se referiu ao fato de, neste momento, não haver tempo e espaço nem mesmo para as discussões clínicas em homeopatia.

 

O acolhimento no CS Modelo

A temática do acolhimento nos serviços de saúde adquire importância crescente no campo médico-sanitário e, de acordo com Teixeira (2003, p.98), "vem requalificando a discussão a respeito do problema do acesso e da recepção dos usuários nos serviços de saúde", objectivando a qualificação e humanização das relações entre os serviços de saúde/trabalhadores com os usuários. O acolhimento, enquanto directriz operacional, pressupõe a atenção a todas as pessoas que procuram os serviços de saúde e a reorganização do processo de trabalho, deslocando o eixo central do médico para uma equipe multi-profissional que se encarrega da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver seu problema (Franco, Magalhães, 2003).

No CS Modelo não existe uma equipe de acolhimento, mas este tema já foi abordado com os trabalhadores de saúde na gestão anterior, durante reuniões específicas sobre o seu processo de implantação na unidade. De acordo com os profissionais, na prática, este modo de organizar o serviço não se efectivou até o momento.

(Entrevistado 4): O nosso Posto não está assim envolvido no sistema de acolhimento, o Posto todo não está envolvido.

No entanto, quando abordado especificamente sob o enfoque da consulta médica, do atendimento dispensado pelas médicas homeopatas que actuam no serviço, o "acolhimento" na unidade foi considerado muito bom por todos os entrevistados. O atendimento destes profissionais foi referido como sendo pautado pelo diálogo, afecto e atenção, corroborando Teixeira (2003), que se refere à necessidade de o acolhimento ter também um carácter de acolhimento moral do usuário do serviço e de suas demandas, que podem envolver um sofrimento importante. De acordo com o mesmo autor, o diálogo, neste caso, teria por objectivo buscar maior conhecimento das necessidades de que o usuário se faz portador e dos modos de satisfazê-las.

O gestor actual da unidade referiu que o termo acolhimento foi muito utilizado pela gestão anterior, mas que a implantação desse novo modo de organizar o serviço deixa muito a desejar na unidade. Segundo o entrevistado (gestor actual), para se ter um bom acolhimento, o CS Modelo teria de contar com local adequado e com profissionais capacitados para identificar e hierarquizar as demandas dos usuários, não as super-valorizando desnecessariamente, a fim de não ocasionar um aumento das mesmas e a dificuldade em atendê-las.

Ao se tratar do acolhimento ao usuário, a questão da acessibilidade voltou a ser apontada pelos entrevistados como um tema de extrema relevância. Voltaram à tona questões envolvendo o acesso geográfico e funcional. A centralização do atendimento homeopático pelo SUS no CS Modelo, o número insuficiente de médicos atendendo no serviço, as dificuldades já mencionadas para o agendamento de consultas, a sobrecarga ocasionada pelo atendimento usual de intercorrências e a demanda reprimida foram apontados como os principais motivos para que o serviço não consiga oferecer um acolhimento adequado, sobretudo, sob a perspectiva do acesso, recepção no serviço e solução das demandas. Observou-se, no entanto, que alguns dos problemas citados estavam relacionados também à existência de vínculos empregatícios diferenciados dos profissionais do serviço, repercutindo, inclusive, no cumprimento de carga horária.

Percebemos, por meio de observação direta que, em termos de instalações físicas, o serviço realmente não conta com local adequado para recepção e acolhimento dos usuários: os mesmos aguardam por suas consultas em bancos de madeira colocados no final de um corredor em frente à porta do consultório. No entanto, sabe-se que o acolhimento é um dispositivo que vai muito além da simples recepção do usuário e local adequado para atendimento, devendo ser considerada toda a situação de atenção a partir de sua entrada no sistema (Franco, 2003; Leite, Maia, Sena, 1999).

Chamou a atenção também que, para alguns dos entrevistados, foi estabelecida uma relação directa entre "ser bem atendido" e uma postura passiva por parte do usuário do sistema. O gestor considerou que o atendimento na unidade, dentro do possível, é bom, e que os usuários em geral são tranquilos e muito passivos, aceitando bem as dificuldades, reivindicando muito pouco os seus direitos, questão esta que aparece também na fala de uma das médicas e de uma usuária. Segundo Campos (1997, p.181), "a relação profissional/cliente é concebida como intercâmbio entre um sujeito potente - geralmente o médico - e um objecto suposto de ser dócil, activo apenas quando presta informações necessárias ao diagnóstico". O mesmo autor acrescenta que a própria denominação 'paciente', utilizada usualmente quando se faz referência ao doente, já revela, conceitualmente, uma situação em que o mesmo teria de suportar os sofrimentos sem queixa.

(Entrevistado 9): Eu vim sujeitada a ganhar um atendimento gratuito, gratuito, né, entre aspas porque alguém paga por esse atendimento, os funcionários não estão aqui sem receber, né?! Tu tem que te sujeitar a fazer sem questionar.

Sobre o sistema de referência e contra-referência e a resolução das demandas, segundo o gestor, há resolutividade na medida do possível, porque a unidade depende demais do sistema secundário e terciário no que se refere a consultas especializadas e à realização de exames de média e alta complexidade.

 

Vínculo e confiança: a relação médico/utente

A relação médico/utente, é um dos determinantes da resolução dos problemas de saúde, e a grande parte da efectividade médica resulta da satisfação das pessoas durante o processo de tratamento. Esta satisfação não se limita ao aspecto técnico-científico da medicina, mas inclui também a qualidade do vínculo, comunicação interpessoal e o modo como se estabelecem essas relações (Luz, 1997).

Ao abordarem este tema, as médicas iniciaram traçando o perfil dos usuários na tentativa de explicar o porquê da vinculação dos mesmos ao serviço. Na maioria são mulheres de meia - idade, um grande número de idosos e crianças, que geralmente pertencem a uma "classe média falida". Muitos são aposentados, professores, artistas, que residem no entorno da unidade, usualmente portadores de doenças crónicas, alguns extremamente sofridos, com muitas perdas e problemas emocionais, por estes motivos se vinculam com muita intensidade e são bastante assíduos. Foi referido que os idosos, em especial, estabelecem um vínculo muito bom com o serviço e que, geralmente, são pessoas amigas, carinhosas, pacientes e gratas aos profissionais.

De acordo com as entrevistas, o vínculo mais forte entre médicos e usuários se inicia a partir do momento em que os resultados terapêuticos positivos começam a aparecer, quando, então, o usuário passa a ter mais confiança e a compreender melhor a racionalidade da prática homeopática. A homeopatia está baseada na valorização do indivíduo enquanto totalidade, e não somente em sintomas e doenças específicas, centrando-se na terapêutica, e não na diagnose, e utilizando a narrativa como instrumento fundamental da consulta. Isto torna a relação médico/utente valorizada como recurso terapêutico que ajuda a compreender a singularidade do sujeito doente e curar ou aliviar o sofrimento (Lacerda, 2003).

De acordo com Luz (1997), a relação médico/paciente pode ser considerada um dos determinantes da resolubilidade dos problemas de saúde, grande parte do sucesso da prática médica resulta da satisfação do paciente em relação ao tratamento.

Foi colocado pelas médicas que o atendimento homeopático é diferenciado porque nele a escuta é muito valorizada, mesmo que, por meio dela, nem sempre seja possível resolver todos os problemas de saúde do usuário. Consideram que muitos dos insucessos de alguns tratamentos estão directamente relacionados à falta de tempo que o médico tem para ouvir seus pacientes, resultando num tratamento inadequado. Sabe-se que a relação médico/utente é permeada por tensões e conflitos que envolvem relações de poder e processos de subjectivização, independentemente da racionalidade em questão. Martins (2003) argumenta que podemos identificar inúmeros médicos alopatas que não se deixam seduzir pela rigidez do conhecimento canónico e desenvolvem uma escuta clínica e humana semelhante; do mesmo modo que é possível identificar terapeutas alternativos que, por trás do discurso renovador, demonstram ser utilitaristas e egoístas; chamando a atenção para o fato de que o tipo de relação estabelecida não depende da racionalidade médica em questão, estando esta sustentada num atendimento humanizado calcado no tripé encontros-afectos-conversas (Teixeira, 2005). Entretanto, não há como desconsiderar que a homeopatia, ao valorizar a escuta como procedimento essencial a sua prática, favorece o sucesso da relação terapêutica e, consequentemente, influi positivamente no tratamento.

Para os outros trabalhadores que actuam no serviço homeopático, o vínculo que se estabelece é muito forte; os usuários se apegam às médicas, chegam ao serviço e as procuram pelo nome, não aceitando serem atendidos por outro profissional. A satisfação do usuário parece estar directamente relacionada à qualidade do vínculo estabelecido. Na opinião da farmacêutica, este fato está associado à anamnése homeopática, que é bem mais detalhada, para possibilitar ao médico encontrar o medicamento do paciente. Na homeopatia, a individualização é muito relevante, por este motivo, Hahnemann (2001) ressaltou a necessidade de o médico observar e escutar os usuários sem julgamento ou interpretações, valorizando os sintomas subjectivos e objectivos narrados pelos mesmos. Para a farmacêutica, na medida em que vai se estabelecendo uma relação maior de vínculo e confiança, os usuários vão relatando, cada vez mais, seus problemas e sofrimentos.

(Entrevistado 7): É uma deusa, é uma deusa, a doutora A. é fora de série, filha. Ela tem tanto carinho com a gente velha, a gente chega, ela abraça a gente como seja da família, quando sai ela abraça a gente, ela diz "volta de novo".

Na fala dos usuários, as médicas são tidas como pessoas boas, alegres, carinhosas, que sabem ouvir e entender o paciente. Acrescentam ainda que conversam sobre tudo com elas, não somente sobre os problemas de saúde que os levaram ao serviço. Comparando o atendimento homeopático e o alopático, referiram-se ao tempo diferenciado da consulta, a impessoalidade dos médicos alopatas que trabalham no SUS e ao fato de eles se aterem somente às doenças.

Por outro lado, foi dito que o médico alopata examina e solicita mais exames complementares que o homeopata, questões identificadas como parâmetros de qualidade pelos usuários entrevistados. Na biomedicina, quando se pretende diagnosticar uma doença e tratá-la, são priorizados os sintomas objectivos e as alterações corporais diagnosticadas por meio de exames complementares muitas vezes sofisticados, em detrimento da abordagem de aspectos subjectivos do adoecer, que envolvem as queixas emocionais, os sentimentos e a singularidade do processo saúde-doença, não validados por alguns profissionais de saúde (Lacerda, 2003). Ao se objectivar a doença e nomeá-la, não se leva em consideração que a doença do médico não corresponde necessariamente à doença do paciente (Canguilhem, 2002), podendo gerar um desencontro entre os significados pessoais do adoecimento e a percepção médica e os resultados da acção terapêutica. Além disso, os recursos tecnológicos da medicina e o poder da mídia na divulgação e ideologização do público em geral sobre os avanços nesse campo e o consumo dessas novas tecnologias acabam repercutindo no imaginário e na percepção das necessidades de saúde por parte da população em geral (Castiel, 2007, 2003, 1999).

Para o gestor da unidade, a questão da relação médico/utente ser ou não pautada pelo vínculo e confiança está directamente ligada ao estilo do profissional, e não à racionalidade médica em questão. Importa a atenção que o médico dispensa durante a consulta e "esta coisa mágica" que faz com que o usuário confie num sujeito que nunca viu anteriormente. Coloca que uma boa relação médico/paciente não é muito fácil, sobretudo num sistema de saúde onde o profissional tem uma série de dificuldades para dar um bom atendimento, é desvalorizado e visto pelo usuário como sendo o próprio sistema.

 

Cuidado, cura e alívio do sofrimento

O cuidado seria mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo; representaria uma atitude interactiva de ocupação, preocupação, de responsabilização e envolvimento afectivo para com o próximo. O cuidado seria apreendido como uma acção integral voltada para a compreensão da saúde como um direito de ser; seria a atenção ao sofrimento, frequentemente fruto de fragilidade social, com tratamento digno, acolhedor e respeitoso (Luz, 2004; Boff, 2000).

Quando abordamos o tema 'cuidado' optamos por fazê-lo sob os seguintes enfoques: cura ou alívio do sofrimento, atendimento às necessidades de saúde, e o fato de o usuário ser ou não assumido como um todo pelo serviço. O entendimento dos entrevistados sobre o tema foi muito associado à questão da resolubilidade, especialmente sob a perspectiva da cura e alívio de sintomas, observando-se uma hierarquização dos conceitos por parte dos entrevistados.

Não existiu consenso a respeito de a homeopatia curar ou somente aliviar o sofrimento. Uma profissional disse que nunca ouviu nenhum usuário referir-se ao fato de ter sido realmente curado pela homeopatia, mas concorda que alivia muito o sofrimento das pessoas. Os demais consideraram a existência de casos nos quais a homeopatia pode realmente curar e de outros em que somente traz o alívio - para as médicas, isto vai depender do problema de saúde.

A respeito do processo de cura na homeopatia, Constantine Hering, médico homeopata, discípulo de Hahnemann, que sistematizou as Leis de Cura homeopáticas, conhecidas por "Leis de Hering", a melhora dos sintomas ocorre de cima para baixo e desaparecem na ordem inversa de seu aparecimento; a melhora da enfermidade ocorre de dentro para fora, do mental para o físico, sendo que o alívio aparece primeiramente nos órgãos mais importantes, e os sintomas da pele e das mucosas são os últimos a desaparecer (Hering apud Eizayaga, 1981). Nos dias actuais, sabe-se que grande parte da demanda por atendimento médico envolve queixas relacionadas a sofrimentos físicos e psíquicos genéricos, inespecíficos, não contemplados e muito menos equacionados pelo arcabouço anátomo-patológico e clínico constituído pelo modelo biomédico, trazendo a categoria "alivio" à centralidade das práticas em saúde.

As médicas também relacionaram esses resultados ao pouco tempo que têm tido para fazerem o estudo aprofundado de cada paciente e para discussões clínicas - situação decorrente, segundo elas, do excesso de demanda e do número insuficiente de profissionais actuando no serviço neste momento. De acordo com Lacerda e Valla (2004), para que o profissional consiga identificar o sofrimento e ajudar os sujeitos, é necessário escutá-los para saber o que sentem e temem, objectivando validar o que é relatado pelos mesmos.

(Entrevistado 2): Ele pode se curar e às vezes só trás alívio, são as duas funções também. Precisa curar, se não der pra curar, alivia.

(Entrevistado 7): Cura, filha. Eu estava muito doente esses tempos e ela me receitou arnica e umas outras coisas e foi uma beleza, né.

Os profissionais de saúde acreditam que, no serviço, o usuário é assumido como um todo, mas relacionaram isto às características terapêuticas e à maneira como a medicação homeopática age no indivíduo. Já os usuários relataram que as médicas são afectuosas e têm uma preocupação com o bem-estar do paciente, e se sentem inteiramente assumidos pelo serviço, tal como afirma Machado et al. (2004, p.69) quando diz que "a procura pela homeopatia está associada à busca por uma 'humanização' do atendimento (associada pelos pacientes a termos como confraternização, carinho e amor)".

Para o gestor, os médicos, em geral, não curam, apenas aliviam o sofrimento de seus pacientes. Afirmou que hoje, na medicina, a maioria das doenças não tem cura, citando como exemplos: a hipertensão, a diabetes e as doenças reumatológicas.

Com base na observação, na análise de documentos e nas entrevistas, percebemos que há uma série de problemas que têm prejudicado o bom funcionamento do serviço, que vão desde a forma de agendamento e acolhimento dos usuários, a presença de diferentes vínculos de emprego, passando por dificuldades de aquisição de matéria-prima para a farmácia homeopática até falhas nos sistemas de referência e contra-referência.

 

Considerações finais

A organização do Sistema Único de Saúde brasileiro ainda tem como grande desafio o atendimento adequado às necessidades da população. A crítica ao modelo hegemónico de atenção baseado na biomedicina tem produzido análises pautadas em questões estruturais, de ordem política, social e económica (Campos, 1997; Mendes et al., 1994; Merhy, 1992). O aumento da demanda de atenção médica em decorrência de problemas de saúde abrangentes, que incluem aspectos psicossociais, do desequilíbrio da demanda/oferta dos serviços públicos de saúde e da baixa resolubilidade do modelo biomédico, faz com que seja necessário redefinir práticas de atenção, superando a visão cartesiana e reducionista e reorganizando os serviços.

Valla (2005) enfatiza que, nos dias actuais, mesmo com uma rede de saúde pública extensa, não tem sido possível atender a uma queixa usual das pessoas, denominada "sofrimento difuso" - dores de cabeça, dores no corpo, medo, ansiedade - sintomas para cujo tratamento o sistema não dispõe nem de tempo nem de recursos, restando à medicina tradicional medicalizar o problema. A oferta de atendimento homeopático pelo SUS traria às classes populares a oportunidade de uma atenção diferenciada, mais adequada na abordagem dos sofrimentos contemporâneos, e que concorre com os princípios de humanização e de resolubilidade dos serviços.

Observou-se que, no caso analisado, a promoção da integralidade da atenção à saúde tem sido restrita a alguns de seus aspectos, como o vínculo e o cuidado directamente associados à relação médico/utente. No entanto, o processo de trabalho foi pouco problematizado; pode-se dizer que o acolhimento no serviço inexiste e sua implantação não parece prioridade. Ao longo do tempo, ocorreu perda de profissionais e de espaço físico dentro da unidade de saúde, havendo o aumento da demanda reprimida. A acessibilidade foi uma das questões mais identificadas como problema, e a centralização deste tipo de atendimento em um único serviço na cidade é um dos factores que têm dificultado o acesso dos usuários. A própria gestão do serviço demonstrou clara falta de adesão, comprometimento e interesse em investir num modelo não biomédico, contrariando a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (portaria MS n� 971/2006).

Embora a homeopatia seja uma racionalidade médica coerente e fortalecedora dos princípios do SUS, é preciso que ela seja reconhecida, valorizada e disponibilizada como opção terapêutica a toda população, contribuindo na promoção da integralidade em saúde.

 

Colaboradores

Os autores Carolina Santanna e Élida Hennington participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto. Roque Junges participou da revisão bibliográfica, de discussões e revisão do texto. Carolina Santanna desenvolveu as atividades de campo da pesquisa.

 

Referências

ACURCIO, E.A.; GUIMARÃES, M.D.C. Acessibilidade de indivíduos infectados pelo HIV aos serviços de saúde: uma revisão de literatura. Cad. Saúde Pública, v.12, suppl., p.233-42, 1996.