Políticas de igualdade para a globalização
20-Fev-2009
José Manuel Pureza

 José Manuel Pureza

1. A globalização é uma maneira de falar do mundo. Uma maneira ardilosa. De mansinho anuncia a interdependência como realidade, como se todos tivéssemos passado a depender de todos de modo igual. A globalização é o discurso da dependência reforçada de alguns disfarçada de dependência mútua de todos. De mansinho, prescreve o movimento – de bens, de pessoas, de ideias – como lei, como se a circulação do trabalho fosse tão livre como a do capital. A globalização é o discurso da circulação selectiva disfarçada de liberdade de circulação universal. De mansinho, prescreve modelos políticos e económicos como únicos, como se não houvesse alternativas. A globalização é o discurso da política liofilizada disfarçada de política necessária.

2. A globalização real exibe três marcas essenciais A primeira é a da polarização social e da desigualdade. Os números do Banco Mundial são claros: em termos de rendimento per capita, um habitante do país mais rico do mundo (a Noruega) tem 60 vezes mais rendimento que um habitante do país mais pobre (o Burundi); e a região mais rica do mundo tem um rendimento per capita 20 vezes maior que a região mais pobre. A segunda marca é a da fragilização do contrato social e das democracias. O afastamento crescente entre o espaço das decisões que contam e o espaço das instituições que representam os cidadãos é o outro rosto da governação da globalização política e económica por uma nebulosa de estatuto e de contornos indefinidos. A terceira marca é a do esvaziamento do princípio da autodeterminação. Fora dos cânones da "boa governação" definidos por aquele nebulosa, os Estados são estigmatizados como "falhados", "colapsados" ou "párias", com todas as consequências daí advenientes.

3. A procura de consensos vagos em torno da satisfação de exigências humanitárias mínimas ocupa, na ordem global real, o lugar da promoção efectiva de todos os direitos humanos para todos. As estratégias de redução da pobreza postas em marcha pelo Banco Mundial ou os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio mais não são do que fórmulas de combate à pobreza e à injustiça mais chocantes sem beliscar os mecanismos que as produzem. E, nesse sentido, são acima de tudo técnicas de contenção das periferias turbulentas ao mesmo tempo que perpetuam todos pressupostos dessa condição periférica – desde a inserção subalterna no comércio internacional até à espoliação dos recursos naturais desses povos por formas várias de bio-pirataria, passando pela extroversão da governação desses países ou pelo fechamento das fronteiras dos países mais ricos, tanto às pessoas como aos produtos originários dos países mais pobres.

4. Neste quadro, uma Esquerda comprometida seriamente com a afirmação de políticas de igualdade em escala global tem que situar esse combate em três frentes essenciais.

1. A primeira é a do respeito pela auto-determinação dos povos, da sua soberania permanente sobre os recursos naturais e da sua soberania alimentar como parâmetros intocáveis das políticas externas e de cooperação dos demais Estados. A solidariedade com os combates pelos direitos humanos, tanto civis e políticos como económicos e sociais, em todo o mundo tem no direito à auto-determinação um suporte imprescindível, como é sublinhado pelos próprios Pactos Internacionais das Nações Unidas. A Esquerda da igualdade global rejeita que o humanitarismo sirva de álibi para justificar intervenções militares e encara a exigência do princípio da responsabilidade de proteger como desafio dirigido, em primeira linha, à coerência das políticas externas e de cooperação do mundo mais desenvolvido e não como dispositivo de legitimação do intervencionismo internacional.

2. A segunda frente é a do reforço quantitativo e qualitativo da cooperação para o desenvolvimento. É urgente que se forme e que ganhe força um grande movimento cívico que reclame o cumprimento das obrigações há muito assumidas pelos países mais desenvolvidos (desde logo, por Portugal), no quadro das Nações Unidas, designadamente quanto à afectação de 0.7% do PIB a ajuda pública ao desenvolvimento. Mas não é apenas de reforço quantitativo que se trata: é necessário que esse movimento social traga para o debate público a urgência de as políticas de cooperação para o desenvolvimento atribuírem prioridade à canalização da ajuda para o investimento nos sectores produtivos e na criação de emprego e pautarem-se pelo primado da articulação entre protecção da biodiversidade, valorização e defesa do património genético e soberania alimentar nos países de destino.

3. A terceira frente é a das políticas de acolhimento. Ao fechamento, com muros físicos e com outros, que hoje é praticado pelas lideranças europeias de matizes vários, a Esquerda da igualdade global tem que contrapor a exigência de um grande programa europeu de acolhimento de imigrantes e de uma política de protecção internacional efectiva de refugiados e de peticionários de asilo. Esse programa europeu de acolhimento terá de encontrar prolongamento nas políticas sociais nacionais e europeias, no reconhecimento de direitos políticos aos imigrantes, e na combinação entre universalidade dos serviços públicos essenciais e centralidade das políticas de valorização da interculturalidade.

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