Notas (e um intróito) sobre o papel do Estado na economia
13-Abr-2009
José Reis é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de CoimbraNão partilho o diagnóstico do texto posto em discussão. Mas concordo com as propostas e junto-me à noção de que o Estado é central numa agenda de esquerda. Mais do que isso, parece-me que o desafio essencial da esquerda hoje é, justamente, construir uma agenda para a governação pública. Este texto tem, portanto, a qualidade de não fazer da luta política uma simples questão de luta posicional, assumindo uma atitude de intervenção na governabilidade.

Contributo de José Reis

Há muito que, como economista, penso que o que faz do Estado um actor decisivo na economia é o facto de ele ser a sede principal da formação de "significados e meios colectivos": estabelece consensos, promove prioridades, consolida capital fixo social, define a contratualidade implícita entre agentes privados e entre estes e a esfera pública, influencia as formas de organização da economia e da sociedade. Há maneira mais simples de dizer isto: as regras, as normas sociais, a confiança e a motivação dependem criticamente do Estado.

Acontece, contudo, que só defendo o que acabei de dizer porque me parece que, no Estado, há uma irredutível dimensão colectiva e pública - enfraquecida ou reforçada pela luta política - e que é nisso que consiste a própria natureza da instituição (ou melhor, do conjunto de instituições) a que chamamos Estado.   

Não tenho grandes dúvidas a este propósito: a dimensão pública, colectiva, estratégica, escrutinável do Estado e da acção estatal é sempre superior à sua eventual dimensão predadora, perversa. Mais do que isso, aquelas dimensões positivas são, elas mesmas, um instrumento da acção política de esquerda, tanto quanto um objectivo. Por isso, insisto na visibilização do que é inerente ao Estado democrático, admitindo que isso faz já parte do propósito de assegurar o seu reforço. Sei que há quem não pense assim: que há quem privilegie a também indiscutível captura do Estado por interesses (colectivos ou privados), quem dê prioridade aos ganhos de posição que decorrem da inevitável conflitualidade política interna da esquerda, quem limite a solução ao enunciar o problema. 

Uso o que acabei de dizer para olhar para o Estado na conjuntura política contemporânea em Portugal, assim como para olhar para o papel do Estado perante a crise. Do meu ponto de vista, o grande ensinamento da convulsão económica e política que atravessamos é que a sociedade e a economia não funcionam sem uma significativa espessura pública que lhes dê possibilidades de se reconfigurarem através de um capital social acumulado historicamente. Os mercados e a mercantilização sem limites - exactamente porque privatizam e retiram para o campo individual o que, de outro modo, seria um lubrificante colectivo -  são as raízes exactas das crises, das desigualdades, do esbatimento das capacidades de sustentação das sociedades. A utopia ordo-liberal da regulação dos mercados e o tratamento cerimonial da concorrência são o rosto exacto da esquerda mínima e a medida da sua trajectória desordenada para sucessivas soluções espúrias.

Esse papel de criação de uma espessura capacitante de natureza pública, colectiva, competente, partilhável e socialmente orientada começa, evidentemente, nas grandes áreas em que o papel provisor do Estado é inamovível: escola pública, saúde pública, segurança social pública, administração pública. É aí que começa a construção de uma sociedade capaz de se robustecer sistematicamente. Estes são domínios em que o Estado se pode fortalecer a partir de si mesmo, visto que, felizmente, são áreas robustas da acção pública.

Mas há, a seguir, áreas em que se trata de pugnar pelo regresso do Estado. É hoje claro quais são: sistema bancário e financeiro e gestão do crédito, "monopólios naturais" (energia, água, comunicações, grandes transportes). O balanço da visão de que ao Estado cabe criar mercados está hoje a fazer-se sobre cinzas. E talvez isso ajude a ver que as sociedades modernas não se capacitam e robustecem só através das dimensões estatais ditas "sociais", mas também das que têm uma clara natureza económica, configuradora do processo de criação e circulação de riqueza.

Finalmente, parece-me também muito evidente a redobrada importância dos investimentos que equipam o país, criam externalidades positivas e dotam as políticas públicas em que há provisão directa pelo Estado de condições de eficácia e modernidade.

José Reis é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) e Investigador do Centro de Estudos Sociais (CES)

{easycomments}